Dos riscos à realidade: a exigência de Ciência

A primeira prioridade cívica é o conhecimento cabal e objectivo do que se passou em Pedrógão Grande.

Na sequência da catástrofe dos incêndios florestais de Pedrógão Grande, o Estado e a sociedade civil mobilizaram-se para acudir às populações. Esta acção solidária tem sido muito positiva. Decorre, em paralelo, um conjunto de iniciativas que exige o esclarecimento rigoroso do que aconteceu. O número elevado de vítimas e de danos justifica essa exigência que constitui um direito e um dever em democracia.

É pois natural que na comunicação social se coloquem perguntas, que os cidadãos queiram saber o que aconteceu e que se recolha informação. Para se obterem respostas consistentes, a complexidade dos fenómenos e comportamentos humanos envolvidos exige uma análise integrada com base em metodologias científicas. Esta análise deve ter como objectivo principal a identificação das cadeias de causalidade fundamentais e a identificação das principais razões que motivaram consequências tão penosas. É natural e quase inevitável que esta missão seja atribuída a uma equipa de peritos ou especialistas em diferentes domínios, da ciência e da técnica, associados ao processo. A atribuição de responsabilidades políticas, éticas ou penais deve ser avaliada em outras sedes. É uma prática que tem exemplos a nível internacional.

Uma das comissões mais conhecidas é a que foi nomeada por decisão do Presidente Reagan após o desastre da nave espacial Challenger, em 1986. Por determinação presidencial, foi nomeada uma comissão de 14 especialistas, entre os quais o conhecido prémio Nobel da Física Richard Feynman, com dois objectivos: conhecer as causas e fazer recomendações para o futuro. Foi dado o prazo de quatro meses, escrupulosamente cumprido, tendo sido envolvidos cerca de 2900 funcionários públicos e 3100 funcionários de empresas privadas, feitas 160 entrevistas a personalidades e 35 sessões de audição. Foi apresentado um relatório final: o Relatório Rogers. Foi possível determinar não só a causa física do desastre como a causa humana de ordem ética que foi a “causa da causa”. Em Portugal também foi nomeada, pelo Governo Regional da Madeira, uma equipa técnica independente, após as enxurradas de 20 de Fevereiro de 2010, para avaliação e estruturação de uma gestão do risco de aluviões (1.º relatório ao fim de seis meses).

No caso em apreço, espera-se da comissão de peritos já nomeada a descrição, o mais rigorosa possível, dos processos de ignição e propagação do incêndio, a caracterização probabilística da respectiva excepcionalidade, a análise dos meios utilizados e das acções e omissões nas intervenções das autoridades durante o combate. Gostaria que os peritos examinassem as vulnerabilidades das habitações, das estradas e a eventual necessidade de melhorar os meios de comunicação e de alerta para residentes ou em trânsito na zona afectada. Saliento a variável Exposição, componente fundamental na definição do risco. Entender a razão que motivou a exposição ao perigo de tantas vítimas na estrada EN236-1 e nos caminhos de acesso à mesma é um aspecto relevante. Para além das condições de exposição pessoal é do maior interesse avaliar a aplicação concreta da Lei de Bases da Protecção Civil (2006) e dos planos de emergência e procedimentos locais previstos de prevenção, informação e comunicação, de autoproteção (incluindo a proteção de construções) e a realização de exercícios e simulacros (artigos 7.º, 38.º e 40.º) com envolvimento das populações.

Após o terramoto de 1755, o Marquês de Pombal reconstruiu Lisboa segundo critérios anti-sísmicos inovadores. Em 2017, a reconstrução das habitações na área afectada pelos incêndios também deveria aplicar técnicas inovadoras de protecção envolvente e de maior resistência contra o fogo (aplicação de materiais especiais). Pedrógão Grande deveria ser uma zona piloto na prevenção permanente e protecção passiva contra incêndios florestais. Gostaria que a comissão fizesse recomendações neste âmbito e sobre medidas inovadoras para a gestão local de emergências, nomeadamente a circulação em estradas florestais que podem ser armadilhas perigosas e a capacidade de aviso e evacuação de pessoas isoladas. Tal como os elevadores nos edifícios têm a indicação que não devem ser utilizados em situação de incêndio ou de sismo, algo equivalente pode ser pensado para estradas ou caminhos florestais.

Sublinho o esforço na prevenção e na auto-proteção, em complemento aos sistemas de protecção civil existentes. Com a noção geral de progresso social, consolidou-se a percepção que era possível exigir a garantia de riscos colectivos quase nulos. A realidade é mais complexa. Pode ser verdade para os acontecimentos danosos mais frequentes, cujas consequências podem ser controláveis e espera-se uma protecção quase total. Não é totalmente verdade para os acontecimentos excepcionais, de muito baixa probabilidade e elevada intensidade, em que a exposição e as vulnerabilidades tendem a ser incertas, sendo o controlo completo dos riscos impossível ou socialmente desproporcionado.

Neste caso, que não deve ser confundido com o anacrónico conceito (ainda por vezes referido) de “acto de Deus”, o número de vítimas pode não ser a variável mais indicada para a avaliação da eficácia do sistema de protecção. Caberá então ao Estado a exigência de diligenciar a coordenação e a operacionalização de medidas para garantir riscos residuais que sejam socialmente toleráveis. Os efeitos das alterações climáticas tendem a acentuar este tipo de incerteza e de eficácia parcial mas noutros casos, como o da ocorrência de sismos de elevada intensidade, deve ser sempre tido em consideração, sem ilusões. A prevenção e a protecção são tarefas colectivas.

Em minha opinião, a primeira prioridade cívica é o conhecimento cabal e objectivo do que se passou, a segunda é a eventual correção ou adaptação de procedimentos face a eventos futuros e só depois a responsabilização de pessoas e entidades em sede própria. Em sociedades primitivas, as mortes violentas suscitavam rituais de culpabilização conforme nos descreve a antropóloga Mary Douglas [1]. A explicação “post-mortem” seria uma ofensa moral a deuses ou a actuação de um adversário pessoal ou de um traidor ou inimigo da comunidade. Era a forma de dar respostas face ao inesperado, de aplacar a ira popular, o desgosto, e de construir um dispositivo colectivo de ilusão positiva de protecção e de coesão, mas também de manipulação.

Na época contemporânea, a ciência e a técnica substituem com eficácia comprovada esses rituais no que respeita a explicação e a capacidade de protecção. Mas não totalmente noutras dimensões. Com efeito, muitas das intervenções sobre responsabilidades do Estado que lemos e ouvimos recentemente podem ser correctas como forma de pressão política ou de interpretação corrente do Direito mas parecem ser anacrónicas do ponto de vista científico, próprias de uma época em que se considerava a ciência e a realidade como sendo completamente determinísticas e controláveis. Compreendemos que a explicação científica nem sempre é bem entendida pela generalidade da população, ao contrário dos rituais ancestrais. Na verdade, culpas e responsabilidades instantâneas ou simbólicas não fazem parte da ciência.

Reconhecemos, no entanto, que uma catástrofe humana envolve outras dimensões para além da científica, mesmo incluindo as ciências sociais. É, pois, natural que outras formas de transmitir sentimentos ou de traduzir o desconforto humano perante uma tragédia sejam adoptadas, incluindo a transfiguração literária dos acontecimentos, apaixonada e com linguagem depurada (os termos “estrada da morte” e “fita do tempo” são exemplos). Pode mesmo acontecer que uma boa ficção venha a ser o complemento necessário dos relatórios técnicos.

O que devemos dispensar é a má literatura ou a má-fé. A expressão “a culpa não pode morrer solteira” revela bem a manipulação de uma atitude ancestral. Na realidade, a culpa não deve ser o mais importante, nem devemos ser amantes da culpa. O que interessa, em primeiro lugar, é saber se após o desastre do avião da TAP em 1977 (131 mortos) podemos aterrar com mais segurança no Funchal, se após a tragédia de Alcafache (cerca de 150 mortos), em 1985, os comboios portugueses estão mais seguros ou se após a tragédia de Entre-os-Rios (59 mortos), em 2001, as pontes portuguesas estão devidamente controladas e seguras. Reconhecemos que a cultura científica tende a ser cada vez menos considerada, e até ser marginalizada. Da “sociedade do conhecimento” passou-se para a “sociedade do risco” e a seguir, talvez, para a “sociedade de vítimas” e, talvez, a seguir voltemos um dia a ter deuses.

[1] Mary Douglas (1992), Risk and Blame. Essays in Cultural Theory, Routledge

O autor escreve segundo as normas do novo Acordo Ortográfico

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