Um certo odor a bafio

Deixar que a necessidade de reforçar a segurança leve o Governo a alimentar a ânsia de controlo é o princípio de um caminho que levou sempre o mundo para lugares errados.

Sorrateiramente, nas férias grandes, entre o prazer do sol e o drama dos incêndios, o Governo andou entretido a urdir o mais consistente plano de ataque às liberdades públicas fundamentais dos últimos anos. Fielmente ajudado pelo CDS e pelo PSD, avalizado pela aura presidencial e pelo prestígio do constitucionalista Marcelo Rebelo de Sousa, o Governo não se deu por satisfeito ao autorizar o acesso dos serviços secretos ao cruzamento do rasto das nossas conversas telefónicas com as portagens que passamos ou com os sites da internet que visitamos. Já este Agosto avançou com mais duas medidas hediondas que, dêem-lhe o embrulho que derem, metam ou não o Supremo Tribunal ao barulho, representam um violento ataque direito à privacidade, a trave-mestra da verdadeira liberdade. Pois não bastava os espiões poderem espiolhar a nossa vida por dá cá aquela palha; também o polícia do Bairro Alto vai ter acesso ao que dizemos na via pública se muito bem lhe apetecer.

Num país como o Reino Unido onde até o bilhete de identidade é visto com suspeição, o simples anúncio de uma medida desta natureza bastava para que se erguesse um coro de protesto. Por cá, não. Com excepção do PCP e, principalmente, do Bloco de Esquerda, que mandou algumas das suas principais figuras para a frente de combate, as propostas do governo socialista foram brindadas com um revelador silêncio. Exigir o respeito pelos valores básicos da intimidade pessoal ou o direito a ter uma vida insusceptível de ser controlada pelo Estado e pelos seus agentes é uma extravagância num país que jamais se libertou do paternalismo estadual. É assim que, recorrendo ao velho e relho argumento securitário, pegando em exemplos mal contados sobre o que se passa no estrangeiro, polindo violações flagrantes detectadas há apenas dois anos pelo Tribunal Constitucional, apesar de vivermos num país pacífico, o Governo se dá ao luxo de violar o preceito constitucional que proíbe “toda a ingerência das autoridades públicas na correspondência, nas telecomunicações e nos demais meios de comunicação, salvos os casos previstos na lei em matéria de processo criminal" no meio de uma apatia quase geral. Por vezes, temos o que merecemos.

O que está em causa é grave. O fervor securitário do Governo deixa a levitar a suspeita sobre uma propensão controladora pouco saudável. Não apenas pela aprovação da “lei dos metadados”. Mais grave ainda é a autorização de gravação de conversas na rua aprovada por um banal despacho de renovação do sistema de videovigilância no Bairro Alto. Ou a legislação prometida para Outubro, que vai conceder às polícias o extraordinário poder de aceder a todas as imagens gravadas pelos sistemas de segurança privado que existem nos supermercados ou nos bares.

Estão a ver os polícias de plantão a passar o tempo escutando a conversa do jovem casal numa rua de Lisboa? Estão a ver o cabo ou o sargento de Leiria a querer saber por ondou a namorada do filho ou o marido da vizinha no fim-de-semana passada? Estão a ver o amigo do chefe a pedir-lhe o favorzinho de verificar se logo à noite a namorada anda sozinha na noite lisboeta? Claro que lá virá a ministra, a secretária de Estado ou o primeiro-ministro dizer que tudo isto não passa de demagogia, que haverá controlos, que não haverá abusos. Pois. Já diziam o mesmo antes de termos um espião de opereta a passar segredos para uma empresa do regime, a famigerada Ongoing. Já soubemos de diligências da secreta para captar as comunicações de um jornalista. Já percebemos que é fácil e tolerado o acesso de funcionários do fisco às nossas vidas contributivas. Já sabemos da facilidade com que conversas privadas em segredo de Justiça chegam aos jornais. E tudo isto num quadro em que as garantias de segurança dos dados são muito mais efectivas. No futuro, a nossa privacidade ficará dependente da idoneidade dos polícias ou os seus altos critérios intelectuais e morais para saberem distinguir conceitos tão abstractos e exigentes como o da noção de “perigo concreto para a segurança das pessoas e bens”. 

Se até agora, e bem, o acesso das secretas aos metadados exigiam uma validação judicial, se a captação de conversas privadas em lugares públicos ou nas ligações telefónicas requeria o aval de um magistrado, a proposta do Governo deixa-nos absolutamente entregues ao livre arbítrio da polícia. Ou seja, em última instância, do Governo que tutela as polícias. Se até agora era altamente discutível que o dono de uma discoteca tivesse direito a poder saber se um cliente bebeu duas ou dez cervejas numa noite, conceder à PSP o direito de poder vasculhar quem esteve, quando esteve, com que esteve e e como esteve A ou B nos bares da Galeria de Paris no Porto é um pesadelo.

Custa por isso a perceber que, ao contrário da Comissão Nacional da Protecção de Dados, os magistrados que nos devem defender do excesso de poder do Governo tenham aceitado estas mudanças. E, se o CDS é coerente e deixa nestes momentos deixar a cair a máscara que esconde a face de uma direita musculada e estatizante, não se entende como o PSD vai atrás do Governo numa matéria desta sensibilidade – a prova acabada de que o partido continua a matar a sua matriz social-democrata e liberal. Ver o PCP e o Bloco empenhados na defesa de uma causa que costuma ser particularmente cara aos liberais não deixa de ser mais um exotismo nestes tempos em que vivemos.

O Parlamento ainda tem tempo para sair do torpor das férias e olhar com olhos de ver para os estragos que o Governo anda a fazer e quer continuar a fazer em matéria de direitos, liberdades e garantias. Bem sabemos que este tema diz pouco à maioria dos cidadãos, mas deixar que a necessidade de reforçar a segurança leve o Governo a alimentar a ânsia de controlo, sem que se viva um estado de excepção ou sem que esteja em causa a suspeita de um crime avalizada pela Justiça, é o princípio de um caminho que levou sempre o mundo para lugares errados. Muito antes das ditaduras do século XX ou dos fantasmas de um mundo orwelliano, já Benjamim Franklim dizia: “Todos os que trocam a liberdade essencial por um pouco de segurança temporária não merecem nem a liberdade nem a segurança”.

2- Na Memória Futura da semana passada associou-se o Instituto de Ciências Sociais à produção de “um impiedoso diktat de pensamento neoliberal” que dominou o debate político em Portugal. É verdade que alguns dos mais lídimos e brilhantes teorizadores desse pensamento são ou vieram do ICS. Mas associar os seus cerca de 100 investigadores a uma visão monocórdica do mundo é abusivo não apenas para eles como para o prestígio da instituição. Fica o reparo feito e o pedido de desculpas apresentado.

 

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