A má excrescência da cultura

Um ensaio irónico, arguto e pedagógico sobre o kitsch que, quase cem anos depois, não perdeu pertinência e vigor analítico.

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O “kitsch da sala de estar” para Karpfen: mistura a moral com o picante, a compaixão com o sadismo...

Publicado em 1925, na Alemanha, Kitsch, de Fritz Karpfen é o primeiro ensaio dedicado a esse fenómeno que assombra a relação dos indivíduos com a vida, a cultura e a arte. Não é preciso chamá-lo pelo nome; continua aí, porventura, agora com um histrionismo inédito, mais boçal, que as novas tecnologias vieram amplificar. Afinal, o sentimentalismo, a pomposidade, os chavões, a futilidade e a mentira que este livro denuncia como sinónimos do kitsch, cintilam hoje na televisão, nos escaparates das livrarias e nos ecrãs das redes sociais.

O tom de Fritz Karpfen, historiador de arte, estudioso da obra de Egon Schiele, é controverso, inflamado, irónico e, por vezes, pedagógico. Escreve, na página 28, que o kitsch “é o bluff que quer fazer bluff ao coração”, uma mistura de petulância e delicadeza, falsificação do sedimento artístico. “Uma má excrescência da arte” (página 31) que tem horror ao pensamento e às ideias, mas que, em compensação, encontra aliados nos homens da sociedade moderna. O alvo de Karpfen, como o de muitos dos seus contemporâneos, excede o kitsch: é a sociedade burguesa (neste caso, alemã), que acusa de decadente, são os seus concidadãos, fariseus e hipócritas, “homens-hífens” ou “kitschistas da vida” (pág. 33), sem remédio ou salvação. Propõe, então, pensar o kitsch, recortando as suas tipologias e analisando as suas relações com o génio ou o estilo, a fim de melhor o desmascarar, destruindo, se necessário for, as suas fundações.

Este voluntarismo surgirá, páginas à frente, moderado pelo bom senso e a sensatez. Karpfen compreende e aceita a necessidade que os homens têm dos prazeres breves, da diversão. Julga que devem gozá-los com vulgaridade e alegria pois, caso contrário, sublinha, “a nossa humanidade seria uma mentira”. Um lenitivo para a vida biológica, o kitsch tem uma função social, mas não se lhe restringe: pode ter, também, um sentido metafisico, como negativo da arte: “Pois fruímos o kitsch e, com frequência precisamente, só através dele experimentamos o milagre da arte”, enfatiza (na pág. 95). O problema surge quando o kitsch instala despótico, eliminando a possibilidade de qualquer tensão espiritual, tornando as obras simples meios para fins ou, o que é intolerável, fingindo ser arte. Não há contradição, portanto, entre destruir o kitsch (tarefa a que o autor se entrega no último terço do ensaio, com humor e economia, na análise de desenhos, ilustrações e reproduções fotográficas de esculturas e edifícios) e reconhecê-lo como força maior.

A dedicação de Karpfen ao tema deve ser interpretada à luz dos factores históricos e da conjuntura cultural que João Tiago Proença (tradutor da edição) expõe e discute no indispensável prefácio. Nos finais do século XIX, a independência da arte em relação aos referenciais religiosos, a profissionalização do artista, o corte progressivo com o passado tinham aberto caminho à  autonomia de uma arte (absoluta) em que o como suplantava o quê. Mas, enquanto esta não se consolidava, persistia um vazio que o pechisbeque estilístico, nutrido nas representações da arte do passado, ia preenchendo. Em ascensão, a burguesia encontrava a sua arte num novo mundo industrial, que acelerava o ciclo de vida dos produtos, devorando-os, e diminuía a qualidade das obras, reproduzindo-as em série. O aparecimento do termo (e a sua conceptualização) na Alemanha pós-unificada, nos finais século XIX, não terá sido fruto do acaso. Tardiamente industrializado e urbanizado, culturalmente influenciado pelo romantismo e pelo enfraquecimento da força tradicional da religião, o novo país reunia as condições para a disseminação e a crítica do kitsch na condição de atitude e predicado.

Sem a densidade filosófica de outros intelectuais e teóricos de língua alemã, (o texto O Kitsch no Génio abeira-se, por vezes, da pura idolatria do génio), mas com uma sagacidade que lhe permite sondar os vários domínios do kitsch, Karpfen critica os efeitos da secularização na arte religiosa (“o conteúdo espiritual da ideia está enterrado”), zurze no kitsch exótico, “doença que o comércio ocidental propagou ao mundo” e troça do kitsch nas artes decorativas, recomendando, com paciência, a adequação das formas e dos motivos ao material. Implacável, mas sem perder o humor, escreve, na página 56, que as imagens do “kitsch da sala de estar” misturam a moral com o picante, a compaixão com o sadismo, e, a propósito do “kitsch patrioteiro-militarão”, defende, na página 60, que “um desenho a lápis proveniente de uma trincheira deve ser posto nos píncaros, acima da pintura a óleo com todos os seus generais, a sua cavalaria e o imperador”, Tais encarnações do kitsch são sintomas de uma sociedade alemã tomada pela vulgaridade, o puritanismo, a mentira e a bestialidade. É ela a geradora, na sua hipocrisia, do kitsch cujo desaparecimento Fritz Karpfen, pessimista, não prevê. À sua volta cresce já um novo kitsch, ainda mais industrializado e urbano, de cariz internacional, que terá nos novo-ricos e nas massas proletarizadas uma nova e mais indiferenciada audiência. Resta ao historiador aguardar a chegada de uma arte autónoma, alheia às influências externas, ao comércio, uma arte (já) de um tempo em que a própria arte desapareceu quase da vida. Uma arte pura, que revelará a falsidade da vida (sem a ela ceder), mas cujos contornos precisos ainda não se discernem.

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