Estados de calamidade

Quando gente em pânico anda pelos campos a limpar a toda a pressa e à última hora o mato combustível que deixaram exposto ao fogo – menosprezando o que foi acontecendo pelo menos desde Pedrógão – é porque a predisposição para a incúria começa, frequentemente, pelas suas próprias vítimas.

O Governo colocou vários distritos do interior de Portugal em "Estado de Calamidade" durante este fim-de-semana. E o primeiro-ministro justificou a medida inédita, argumentando: "Se aquilo que já aconteceu até agora foi muito mau, o risco que temos é bastante pior do que aquele que tivemos". De facto, a sucessão imparável de incêndios que vêm reduzindo uma parte significativa do país a uma paisagem de cinzas e desolação parece justificar o alarme. Mais vale tarde do que nunca. E porque andávamos a dormir profundamente, precisamos de um electrochoque para acordar. Resta esperar que a anunciada mobilização de meios de combate aos fogos seja suficiente para impedir a continuação – e o agravamento – da calamidade em que vivemos.

Escaldado politicamente pela gestão desastrosa deste surto de desgraças, António Costa lá vai avisando, em mais uma entrevista ao Expresso, que "as responsabilidades de Pedrógão não ficarão solteiras". Mas o que já aconteceu e o que poderá vir a acontecer, apesar de todos os alertas e medidas preventivas, tem raízes profundas que não é possível escamotear, para além dos cruéis desígnios da meteorologia: o estado de calamidade em que se foi deixando mergulhar o país, pasto fértil das chamas por causa da desordem territorial, florestal e urbanística tipicamente terceiro-mundista que campeia por quase toda a parte. Despertamos subitamente para uma realidade que aqueles mais afectados por ela não foram também capazes de ver, sempre à espera da providência e do Estado.

Quando gente em pânico anda pelos campos a limpar a toda a pressa e à última hora o mato combustível que deixaram exposto ao fogo – menosprezando o que foi acontecendo pelo menos desde Pedrógão – é porque a predisposição para a incúria começa, frequentemente, pelas suas próprias vítimas. O estado de calamidade deveria ser mentalmente interiorizado entre populações que se habituaram a viver fechadas nos seus redutos e que o pesadelo do fogo vem violentamente abalar. O problema é que temos andado – Estado e cidadãos – todos distraídos e anestesiados pela ilusão de que o pior não está para vir ou só acontece aos outros.

E não é preciso sequer a ameaça do fogo para estarmos vulneráveis ao destino. Pode acontecer até numa festa religiosa onde nos deveríamos sentir protegidos pelo Santíssimo, quando um carvalho apodrecido desaba em cima da multidão, como aconteceu na Madeira. A preservação da floresta não é da responsabilidade de ninguém, até porque as árvores que caem de podres pareciam viçosas e verdejantes.

Uma árvore num arraial madeirense fez quase o mesmo número de vítimas mortais do que o atentado terrorista em Barcelona: a inocente natureza e o fanatismo sanguinário associados numa estatística macabra. Até à Finlândia chega essa sede de sangue, enquanto os santuários islamistas vão caindo no Médio Oriente e a Europa perde, uma atrás da outra, as fronteiras ilusórias da segurança.

Fronteiras que nos Estados Unidos se esbatem na insanidade cada vez mais delirante do seu Presidente, para quem racistas, supremacistas brancos, neo-nazis e nostálgicos do esclavagismo não se distinguem de quem contra eles protesta e é por eles atropelado mortalmente (é, decididamente, a moda actual do terror). Como se não bastasse o assustador folhetim que Trump tem mantido com o seu comparsa paranóico da Coreia do Norte, o episódio de Charlotteville veio confirmar o estado de calamidade que se vive na América. O caos chegou a um ponto tal na Casa Branca – tudo o que lá se passa tornou-se definitivamente incontrolável – que Trump deixou de ser apenas "um cancro na presidência", como escrevia um editorialista do Washington Post, mas um caso de internamento psiquiátrico urgente. O fogo, o terror e a loucura são calamidades convergentes.

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