Convenções nacionais e orçamento para a zona euro

A conjuntura política europeia não é favorável a grandes revisões dos tratados, isto é, a convenções e conferências intergovernamentais.

O presidente francês fala de convenções nacionais para a reforma dos tratados europeus e de um orçamento para a zona euro, preparado e validado por um parlamento para a mesma zona e conduzido por um ministro das finanças europeu. Na próxima conjuntura, vejamos, mais de perto, qual é a verosimilhança política de todo este exercício grandiloquente.

O passado recente (2007-2017)

Em pano de fundo e usando uma trilogia conhecida – polity, policy e politics -  o passado recente pode ser sintetizado do seguinte modo: a “políty europeia” data de 2007 com a assinatura do Tratado de Lisboa e fica imediatamente desactualizada e refém da grande crise de 2007/2008; a “policy europeia” seguiu em modo de emergência e adaptou-se às necessidades da conjuntura, das políticas de austeridade aos programas de resgate. A “politics europeia” foi capturada pelo “directório intergovernamental” com a cumplicidade declarada da alta burocracia de Bruxelas e Frankfurt; dessa cumplicidade nasceram instrumentos regulatórios “fora dos tratados”, uma espécie de “algoritmo macroeconómico europeu” que consagrou na última década as políticas de austeridade como “rule of law”. Refiro-me ao pacto de estabilidade e crescimento revisto, ao tratado orçamental de estabilidade, coordenação e governança, ao mecanismo europeu de estabilização e aos chamados Six e Two Packs que, em conjunto, constituem uma “teoria geral da condicionalidade macroeconómica, um autêntico algoritmo europeu” para disciplinar as políticas nacionais.

As mudanças políticas propostas pelo Presidente Francês

Na política europeia está em plena laboração um paradoxo deveras interessante. De um lado, a perda de centralidade do Estado e a sua incapacidade para reconfigurar a sociedade. Por outro lado, a radicalização populista da política doméstica recupera o Estado central como se estivéssemos “órfãos de Estado”. A história, a geografia e os territórios estão, pois, de regresso. A política europeia não gosta da geopolítica, mas é o que aí vem. É neste contexto que devem ser apreciadas as propostas de Emmanuel Macron.

Em primeiro lugar, e dada a geopolítica futura, é quase certo que os impulsos mais fortes para a reforma da União Europeia virão do exterior. Os exemplos abundam: a Rússia e a Ucrânia, o Médio Oriente, a Turquia, o Norte de Africa, mas, também, o Brexit e a Trumpolitics, para citar apenas os principais. Este impulso exterior implica que haja um movimento de reforma fundamental em direcção à política externa, de segurança e defesa (PESD) em todas as suas dimensões, onde se incluem os refugiados, mas, também, a politica energética.

Em segundo lugar, esta dimensão externa muito alargada tem fortes implicações na política interna europeia e em particular na reconfiguração da UEM. As regras orçamentais do semestre europeu (SE), do pacto de estabilidade e crescimento (PEC) e do tratado orçamental (TO) podem ser objecto de uma revisão de conjunto e ser acompanhadas pelo alargamento dos recursos próprios (uma eventual tributação europeia), a mutualização parcial das dívidas soberanas, a criação de um fundo monetário europeu (FME) e uma revisão global dos instrumentos financeiros europeus de apoio ao   investimento. É aqui que se inscrevem as propostas do Presidente Francês de um orçamento para a zona euro, preparado e validado por uma assembleia parlamentar da zona euro e conduzido por um ministro das finanças europeu. Estão em causa dois objectivos maiores: atribuir legitimidade política democrática a uma assembleia parlamentar da zona euro e dar um passo na direcção de uma verdadeira política orçamental que esteja em condições de interagir mais intensivamente com a política monetária do BCE e, nessa medida, possuir uma política económica da zona euro muito mais efectiva.

No mesmo sentido, a criação de uma procuradoria europeia em especial para a criminalidade financeira é um bom sinal, conjuntamente com legislação europeia em matéria de offshores, de combate à evasão e fraude fiscais e mais e melhor harmonização fiscal. Trata-se de travar os efeitos externos negativos da “extra-territorialidade europeia”, um sinal irrecusável de legitimidade democrática que o cidadão europeu saberá reconhecer.

Uma referência breve a dois riscos políticos de fracturação que valerá a pena acautelar. O primeiro risco político é a propósito do Brexit e tem a ver com o que poderíamos designar “a teoria do precedente”, isto é, a escolha deliberada de uma linha dura de negociação apenas com o intuito de impedir ou condicionar novos pedidos de saída; se tal acontecer será sempre um mau princípio de negociação. O segundo risco político tem a ver com a teoria da “Europa a várias velocidades ou círculos concêntricos”, por exemplo, a Europa do mercado único versus a Europa da moeda única. A percepção imediata, sobretudo para os países do leste europeu e em especial o grupo de Visegrado, é a de “uma teoria dos clubes” ressentida por eles como discriminatória. Por isso, seria preferível uma via de “integração diferenciada e inclusiva” de acordo com o ritmo e a vontade própria de cada Estado-membro.

As revisões possíveis dos tratados europeus

A conjuntura política europeia não é favorável a grandes revisões dos tratados, isto é, a convenções e conferências intergovernamentais.  Não é esta, porém, a proposta do Presidente Francês, as suas convenções nacionais são simples fóruns de debate. O modus operandis de qualquer revisão dos tratados deverá levar em linha de conta um conjunto de procedimentos previstos nos tratados, pois são eles que determinam a natureza do policy-process: uma revisão ordinária (artº 48º, nº2 do TUE), uma revisão simplificada (artº 48, nº6 do TUE), as cooperações reforçadas (artº 20 e artºs 42 a 46 do TUE e artºs 326 a 334 do TFUE); de resto, há sempre a possibilidade de obter acordos intergovernamentais realizados “fora dos tratados”, uma prática que tem sido usada com alguma frequência em momentos anteriores. Há, portanto, muitas vias possíveis. O problema é, mesmo, de natureza política, isto é, de composição de um interesse suficientemente maioritário para sustentar um passo desta envergadura sem que, para tanto, seja necessário eclodir um incidente grave que o justifique.

Nota Final

Entre uma “grande revisão, uma refundação”, sob o impulso do BREXIT ou da PESC, e uma “revisão minimalista” vergada ao peso das profundas divergências políticas entre Estados-membros, é sempre possível uma abordagem pragmática de revisão, isto é, uma revisão simplificada nos termos do artº48, nº6 do TUE e isto sem prejuízo de uma negociação ulterior em outras áreas onde a cooperação reforçada também se justifique e onde os exemplos de “excepcionalidade” já existem.

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