Geraldo de Barros está no meio de nós

Inventou processos criativos na fotografia para os quais não existem nomes. A obra radical de Geraldo de Barros, um dos mais marcantes artistas da modernidade brasileira, está pela primeira vez em Portugal numa exposição individual. Tudo o que fez há muito, parece ter sido feito ontem.

Foto
A exposição em Lisboa abre com três imagens captadas em 1951 no estúdio da pintora Vieira da Silva, em Paris.

Primeiro, Geraldo de Barros começou pelo que não se deve fazer. E depois, continuou pelo que não se deve fazer. Se fosse “proibido”, fazia. Ainda assim, contra tudo o que era “normal”, rotineiro ou instituído, a obra fotográfica que construiu em dois momentos extremos da sua vida é aclamada hoje como um furacão pioneiro na cena artística do Brasil do final dos anos 1940; ou como um rasgo de absoluta contemporaneidade, quando o corpo já debilitado o obrigou a parar, no final dos anos 1990.

Do primeiro momento vieram as Fotoformas, série em que os negativos, os ampliadores e as cópias em papel andaram numa roda-viva, na mais solta diatribe experimentadora e anti-salonista. Do segundo, chegaram as Sobras, em que a câmara fotográfica foi chamada a registar um derradeiro impulso criativo, no qual a tesoura, a tinta e o corta e cola foram protagonistas. São destas duas séries as fotografias que dão corpo à exposição Geraldo de Barros: Fotoformas e Sobras, presente até 17 de Setembro na Fundação Árpád Szenes-Vieira da Silva (FASVS), no âmbito da Lisboa, Capital Ibero-Americana da Cultura. É a primeira individual em Portugal deste artista multíplice (pintor, gravador, designer gráfico e industrial), uma alma irrequieta, um espírito subversivo até ao fim e um dos mais marcantes artistas da modernidade brasileira.

Para dar um exemplo de como andou sempre em contramão com as regras estabelecidas (sobretudo na fotografia, mas não só), Geraldo de Barros (São Paulo, 1923-1998) costumava lembrar (dizem as filhas, Fabiana e Lenora) o momento em que olhou para o manual da câmara Rolleiflex com que começou a sua obra e decidiu fazer aquilo que o livrinho mandava “não fazer” — fosse fotografar em contraluz, usar o mesmo fotograma para várias exposições, manusear o negativo ou intervir nele. Geraldo fez tudo isto e muito mais: fez da fotografia não apenas um suporte, mas uma plástica, uma maneira de se sentir e de sentir o mundo, uma poética e uma prática em relação à qual nem sempre se encontrou nomenclatura precisa.

O artista paulista inventou processos criativos na fotografia para os quais não existem nomes. E fê-lo tanto no início da carreira como no fim, quando decidiu pegar em centenas de fotografias de família para fazer com elas “sanduíches de imagem”, onde foi jogando com vários ingredientes, quer fossem negativos, positivos, linhas, sombras ou tinta.

Esticar os limites

Ao olharmos para as imagens de Fotoformas e Sobras trespassa a sensação de que poderiam ter sido feitas ontem. O seu sentido de modernidade é tão forte que se podem descodificar melhor através de um olhar contemporâneo, ao invés de uma visão que as toma como artefactos históricos (Isobel Witelegg). Uma atitude tão heterodoxa em relação não apenas ao fotográfico, como a outros suportes que veio a explorar ao longo da vida, fez de Geraldo de Barros uma figura admirada pelas novas gerações de artistas brasileiros.

Muito antes de transformar o espólio de fotografia vernacular da sua família em arte (por sugestão da filha Fabiana, depois do sucesso de uma exposição no Musée de l’Elysée, Lausana, Suíça, em 1993, que lhe deu o reconhecimento internacional como mestre da fotografia abstracta), em meados dos anos 1940 Geraldo de Barros começou a fotografar equipas de futebol de escalões secundários nos arredores de São Paulo. Desse primeiro treino com a câmara e do trabalho de retoque no negativo que, nalguns casos, era necessário fazer para, entre outras coisas, disfarçar as formas genitais abundantes nos calções de futebol justinhos ao corpo, nasceu a vontade de experimentar outros usos da fotografia e de pôr à prova as suas possibilidades enquanto matéria-prima plástica. Quando na pintura já tinha iniciado um percurso de ruptura com o naturalismo e o figurativismo tradicionais, a partir de 1946 Geraldo encontra na imagem fotográfica um campo fértil para a sua vontade de, por um lado, geometrizar e, por outro, desalinhar (geometrizando) o mundo que o rodeava, à procura de novas formas e de tornar visível o invisível, de apreender intuitivamente a realidade.

Numa tentativa de se misturar com a cena fotográfica da cidade, o artista inscreveu-se no Foto Cine Clube Bandeirante de São Paulo, em 1949. À excepção da facilidade de acesso ao laboratório, este namoro não correu bem. Geraldo — considerado um “atrapalhador” das águas calmas pelas quais navegava o clube — chegou a vias de facto com um dos directores por causa da sua “ousadia” de inventar outros usos para a imagem fotográfica. Conta Fabiana de Barros que, no momento de confirmar no laboratório se as experiências tinham resultado, cada grito seu a anunciar “Deu certo!” ou “Consegui!” era visto como uma afronta ao ideal de fotógrafo que na fase de revelação não deveria ter qualquer surpresa. Só que Geraldo de Barros gostava de criar a partir da fotografia imagens oníricas, onde o erro e a incerteza do resultado jogavam um papel fundamental. Não descurando a técnica, era na experimentação (e também no erro e no acaso) que estava o poder do seu gesto criativo.  

Foto

O arranque da exposição em Lisboa, com a série Fotoformas, é um exemplo de como essa lotaria de construção de imagem sobre o mesmo fotograma funcionava: três fotografias (com múltiplas exposições cada) mostram a clarabóia do atelier de Vieira da Silva em Paris, em 1951. A partir deste ponto de contacto entre a artista portuguesa e Geraldo de Barros, as primeiras salas da exposição na FASVS revelam a diversidade de abordagens que o artista brasileiro fez não apenas à fotografia como suporte, mas ao próprio acto fotográfico — em mais um sinal de contemporaneidade e de vanguardismo, a sua obra neste particular pode ser entendida como um longo acto performativo, que se manifesta tanto na dança que praticava com a câmara (fazendo-a rodar sobre si) como no desenho ou perfuração de fotogramas já expostos.

Ao vermos ainda hoje as opções de Geraldo de Barros na série Fotoformas como ligeiramente estranhas ou particularmente radicais, podemos imaginar o estrondo iconoclasta que terá provocado quando o Museu de Arte de São Paulo a mostrou pela primeira vez em Janeiro de 1951. E foi grande, no bom sentido (também por causa da ousada expografia da arquitecta italo-brasileira Lina Bo Bardi). “A atitude provocadora e persistentemente experimental [de Geraldo de Barros] funcionou como um catalisador para a discussão e mudança dentro de um movimento colectivo. (...) Esta exposição ajudou a ligar como nunca tinham sido ligadas as comunidades fotográfica e artística de São Paulo”, disse à revista Dazed Isobel Whitelegg, especialista em arte moderna e contemporânea no Brasil e curadora da exposição What Remains, que apresentou o trabalho de Geraldo de Barros na Photographers’ Gallery, em Londres, em 2013.  

A exposição no MASP em 1951 valeu ao artista brasileiro uma bolsa para estudar na Europa, onde conheceu alguns dos seus mestres teóricos (Max Bill no concretismo, Otl Aicher no design gráfico). A fotografia lançou-o no grand tour, mas, paradoxalmente, abandonou-a quando regressou para se dedicar sobretudo ao design gráfico e industrial, actividade que o levou a fundar várias cooperativas e empresas (Unilabor, em 1954, Forminform, em 1957, Hobjecto, em 1964). O seu espírito colectivista também se revelou através de vários grupos e galerias que ajudou a erguer (Grupo 15, no final dos anos 1940, Ruptura, em 1952, Galeria Rex, em 1966). Apesar de ter estado ligado a uma miríade de actividades, foi na criação de móveis, a partir de meados dos anos 1950, que Geraldo de Barros mais se aproximou do seu principal objectivo enquanto artista: universalizar a arte.

Dessacralizar o fotográfico

Entre devaneios minimais à procura das mais puras e sensuais formas (como na imagem de um traseiro feminino despido ou no alinhamento de garrafas translúcidas), até ao êxtase do movimento e da repetição (como o teclar frenético do escritor, ou as grelhas de ferro que parecem abraçar-nos), as “fotoformas” trazidas a Lisboa — numa selecção feita pelo comissário Michael Favre a partir da colecção do Arquivo Geraldo de Barros, sediado em Genebra, Suíça — revelam bem até que ponto o artista brasileiro soube descolar da ortodoxia e de uma prática rotineira para dar ao fotográfico um campo conceptual que até então pouco ou nada se tinha manifestado no Brasil (excepção para o médico, escritor e pintor Jorge de Lima, com as suas 41 fotomontagens vanguardistas publicadas em A Pintura em Pânico, em 1943).

Do contacto, na segunda metade dos anos 1940, com a obra de dois grandes mestres da manipulação e da experimentação na fotografia, Man Ray e Lázsló Moholy-Nagy, Geraldo de Barros deu início a uma caminhada dessacralizadora do fotográfico, que ganhou ainda mais impulso antidogmático com o conhecimento (através do crítico Mário Pedrosa) da Gestalt, teoria geral da forma, em que a construção das imagens tende à unidade, pregnância, simplicidade, clareza e harmonia. A forma passou a ser núcleo do seu trabalho fotográfico, opção também influenciada pelos ensinamentos dos ideais modernistas da Bauhaus e abstraccionistas da pintura de Paul Klee.

Foto

Na primeira parte da exposição, vemos como nas imagens que Geraldo construiu a partir do mesmo fotograma as linhas captadas do mundo real parecem querer sair do espaço que as encerra, quando o exercício tendia mais para a abstracção; encontramos experiências de câmara escura a testar os limites da luz e das sombras nas formas geométricas, quando o intuito era o da auto-suficiência significativa (laivos da arte concreta, do qual Geraldo se tornaria um dos mais importantes representantes no Brasil); e deparamo-nos com a mais interventiva atitude para com a fotografia “já feita” (com furos, desenhos, cortes), quer estivesse ainda em latência no negativo, quer fosse tornada já positivo, naquilo a que poderíamos chamar “agressão criativa” em favor do surgimento de novas imagens.

Este lado provocador que sobrepõe na fotografia o próprio universo fotográfico (o das supostas imagens precisas, reais) e o universo do desenho naïf (o das imagens imprecisas, infantis, irreais) despertam-nos para as “invisibilidades” do mundo, como a das fissuras, das asperezas, das texturas, e dos grafitos inscritos nas superfícies pelo tempo ou transportados para a imagens a partir dos pensamentos e dos sonhos. (A lembrar o que é hoje o universo criativo de um dos mais celebrados artistas da contemporaneidade fotográfica: Roger Ballen.)

Subversivo até ao fim

Em Sobras, segunda parte da exposição na FASVS, muda a matéria-prima, o universo visual e o caminho seguido por Geraldo, mas a sua intenção de partida mantém-se e passa por, através da reinvenção de processos criativos, chegar aos mesmos lugares: o da inquietação, da subversão, da interferência e da disrupção. Depois de vários problemas de saúde que o deixaram fisicamente debilitado, Geraldo pegou num conjunto de negativos e de fotografias do arquivo pessoal da família e, entre 1996 e 1998, aplicou-lhes o seu “toque de Midas”, resgatando estas imagens de um mais que provável adormecimento (“A fotografia pertence àquele que fizer alguma coisa com ela e não necessariamente àquele que a captou.”)

Para chegar às imagens de Sobras, Geraldo cortou os negativos e alguns casos também positivos, amontoou-os em placas de vidro e, nalguns casos, pintou a tinta-da-china partes que queria salientar ou esconder. Chegado ao efeito e à imagem imaginadas, estas sanduíches de imagem eram então estabilizadas com uma moldura de fita adesiva para depois serem positivadas (um quebra-cabeças técnico para quem fez as matrizes a partir das matrizes na Suíça). Este intrincado processo significa que a positivação bidimensional que pode ser vista nas paredes da FASVS é só uma das formas de vida destas composições de imagem, matrizes que puderam ser admiradas pela primeira vez na totalidade em 2015, numa grande retrospectiva no Instituto Moreira Salles, no Rio de Janeiro.

Foto
Fabiana de Barros, uma das filhas de Geraldo, trabalhou como assistente do pai durante anos. Foi ela que, em meados dos anos 1990, o incentivou a voltar ao trabalho com fotografia. Surgiu então a série Sobras

Em algumas partes destas fotografias vemos a família de Geraldo em férias, passeios, encontros e todo o tipo de ocasiões banais em que uma câmara fotográfica é suposto entrar em cena no seu mais puro registo de rotina e candura. Noutras temos a acção de um artista gráfico exímio a aplicar a sua longa experiência para construir imagens, que vagueiam entre a melancolia e a ternura, a estranheza e a fantasmagoria. “Se só guardássemos as recordações dos momentos tristes ou alegres enlouqueceríamos. Felizmente existem os restos [as sobras]”, dizia Geraldo, como que a justificar este movimento para o que tinha ficado guardado na gaveta.

A partir de uma amálgama de vernáculo visual pessoal (um dos campos através do qual a contemporaneidade fotográfica mais se tem manifestado), Geraldo de Barros não só reafirmou a presença da centelha criativa até aos seus últimos dias como, sobretudo, fez regressar a sua mais livre e radical atitude para com a vida e a arte. Se assim não fosse (e apesar de um risco calculado), quem se lembraria de pegar em boa parte das principais memórias fotográficas (dos momentos “preciosos e irrepetíveis”) de uma família para as cortar aos pedaços à sua frente? Sobras forma um conjunto de obras intrigantes que parecem ter sido alvo de um acto de vandalismo. Lenora: “Praticamente ficamos sem fotografias de família. É a vida da gente. Foi tudo para as Sobras. As filhas, a mulher... A família incorporou-se no trabalho. É coisa rara, especial, uma forma de amor linda, a dele.”

Através deste acto incisivo sobre a memória visual da família, Geraldo prolongou a sua relação com ela para além dos limites físicos; serviu-se da arte para fabricar uma matéria ligante pública e infinita de afectos.

Sugerir correcção
Comentar