Ricardo Sá Fernandes com o búlgaro que sabia os nomes todos do Conselho da Revolução

Foi no Verão dos seus 22 anos que o advogado Ricardo Sá Fernandes se apaixonou. Não por uma mulher, mas por Istambul, durante o Inter-Rail que fez com um amigo. Quando o dinheiro se acabou tiveram de dormir ao relento em Barcelona.

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À boleia para Andorra DR
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Em Atenas DR

A quatro mil quilómetros de casa, dois rapazes olham estupefactos para os sucessivos brindes que o búlgaro que os acolheu em sua casa horas antes vai fazendo, a vodka a escorregar garganta abaixo: “Álvaro Cunhal!” — zás. “Vasco Gonçalves!” — zás. “Spínola!” — nicht (não), Spínola, nem pensar, dizia o anfitrião, polegar apontado para o chão. Só valia brindar aos comunistas. “Ele sabia o nome de todos os tipos do Conselho da Revolução!”, espanta-se ainda hoje, mais de 40 anos depois daquela monumental bebedeira à conta do ideário soviético, o advogado Ricardo Sá Fernandes.

Naquele longínquo Verão de 1976 Portugal ainda era, nos países do bloco de Leste, uma esperança à espera de acontecer. Mesmo num mundo sem Internet nem telemóveis, a Revolução dos Cravos que acontecera dois anos antes despertara interesse um pouco por todo o lado, tal como a experiência soviética inspirava muita gente aquém-fronteiras. Hoje com 63 anos, Ricardo Sá Fernandes garante que foram, porém, razões bem mais comezinhas a traçar-lhe o rumo daquela que elege como a viagem da sua vida. É que tanto ele como o amigo Mário, que também acabara um mês antes o curso de Direito, estavam a alcançar a idade-limite do Inter-Rail. Hoje a viagem de comboio Europa fora já não tem esse tipo de restrições. E se era para zarparem de mochila às costas e por sua conta e risco, mais valia irem o mais longe possível, até países que podiam nunca mais ter oportunidade de pisar e cujo custo de vida era inferior ao nacional. “Eu, que tinha sido do MDP, ainda tinha alguma curiosidade pelos países de Leste. Mas o Mário não”, recorda o advogado.

Levavam no porta-moedas o máximo que a lei permitia na altura, sete mil escudos em divisas e mil escudos em dinheiro português cada um. Eram 40 euros para 30 dias, que depois de ter deitado contas à depreciação monetária Ricardo Sá Fernandes conclui hoje perfazerem 984 euros. “Era mesmo à pele, e não chegou”, apesar dos truques para esticar o dinheiro. Das noites dormidas a bordo dos comboios em que viajavam até aos almoços e jantares em que se defendiam com sandes de cacete recheado de tablete de chocolate, acompanhadas de leite. “Eram nutritivas e tiravam a fome. Ainda hoje as aconselho a quem fizer viagem de Inter-Rail e tenha problemas destes.”

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“Ele sabia o nome de todos os tipos do Conselho da Revolução!” DR

Com Mário e Ricardo, que morava com a família na Avenida de Roma, em Lisboa, partiu uma rapariga conhecida do primeiro. Clara ia ter com amigos a Itália, e foi com pena que Sá Fernandes, que dava já os primeiros passos na advocacia, lhe perdeu o rasto. A primeira paragem desta viagem de Agosto foi numa aldeia piscatória francesa entre Biarritz e a fronteira espanhola, Saint-Jean-de-Luz, mas foi preciso chegarem à etapa seguinte para Sá Fernandes, que viajara para fora do país senão até Espanha e até Londres, ficar rendido: “Pensava que Veneza era um bocadinho melhor que Aveiro.” A beleza e grandiosidade da cidade atingiu-o de forma indelével. Assim que desembarcou do comboio sentiu-se mergulhar numa recriação histórica. “Foi das sensações mais inesquecíveis da minha vida”, descreve.

Numa altura em que os hostels ainda não eram o pão nosso de cada dia restavam-lhes as pensões modestas, “o mais barato que havia”. De dia passeavam e às vezes iam aos museus, à noite às discotecas. Daí rumaram a Belgrado — “uma cidade austera, bonita. Havia um socialismo de transição — com liberdades que não existiam noutros países” congéneres.

Enjoo atroz

Quando cruzou a fronteira espantou-se com as primeiras fisionomias gregas com que deparou: “Não eram latinos, mas eram mesmo tão parecidos com os portugueses que a sensação que tive foi que estávamos outra vez em Portugal.” A balbúrdia de Atenas foi, como para tantos antes e depois deles, uma grande desilusão. Restou-lhes a magia do Parténon, o  templo dedicado à deusa grega Atena construído no século V a. C., no auge da democracia ateniense. Travaram amizade com um holandês mas por pouco tempo — tinham à sua espera a ilha de Samos, já em frente à Turquia. Era a primeira vez que saíam dos carris e não correu lá muito bem. “Foi uma viagem absolutamente horrorosa, em que toda a gente vomitou, agarrada a uns sacos que ali tinham sido postos”, lembra. O enjoo generalizado foi, porém, um bom pretexto para os dois rapazes de camisas justas ao corpo e calças à boca de sino, Sá Fernandes mais pálido e Mário mais moreno, meterem conversa com duas alemãs que também seguiam no mesmo barco.

O advogado ri-se quando se lhe pergunta se chegaram a namorar: “Um bocadinho, talvez. Pouco...”. Ainda se demoraram mais do que o planeado, mas acabaram por se pôr a caminho de Istambul, enquanto as amigas ficaram pelas ilhas da Grécia. Desembarcaram de autocarro na cidade dos mil e um prodígios. “Foi um deslumbramento! Ainda hoje se tiver de escolher uma cidade no mundo é seguramente Istambul”, confessa o viajante, cuja paixão já o fez ali voltar várias vezes. Fascinaram-o e continuam a fasciná-lo o cruzamento entre o Ocidente e o Oriente, com o Bósforo pelo meio, a Igreja de Santa Sofia, um imponente edifício de origem bizantina mais tarde transformado em mesquita e da herança civilizacional deixada por Atatürk, o primeiro presidente da Turquia. Mas não sem se deter nos acontecimentos mais recentes. “A União Europeia tem responsabilidades no divórcio que se deu com a Turquia e no caminho pelo qual este país enveredou”, critica.

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Depois de uma curta estadia meteram-se na segunda classe do Expresso do Oriente, apanhando em seguida outra ligação ferroviária para a Bulgária. Não tiveram outro remédio senão dormir no corredor, dentro dos sacos-cama. “Os compartimentos estavam cheios de emigrantes e o cheiro era absolutamente impossível”, explica, a memória a trazer-lhe ao nariz a inusitada experiência olfactiva.

Diga-se em abono da verdade que no final dessa viagem até Varna, uma estância balnear búlgara frequentada por líderes comunistas, Álvaro Cunhal incluído, nem o aspecto nem o odor dos dois rapazes seria o mais recomendável: “Não tomávamos banho há dois dias”. O jovem advogado tinha deixado crescer a barba. Era mais prático assim.

Conhecida como a pérola do Mar Negro, Varna tinha um problema: os seus habitantes não falavam inglês, francês ou alemão sequer, língua que o par de viajantes ainda arranhava. Foi quando se tentavam fazer entender na gare dos comboios que lhes apareceu o primeiro anjo da guarda, na pele de admirador do Conselho da Revolução. Quando lhe disseram donde vinham levou-os para casa, num austero bairro operário onde morava com a mãe: tinham passado a ser os seus amigos portugueses. Sentou-os na cozinha e foi buscar queijo, enchidos e vodka e começou a brindar a Vasco Gonçalves, Cunhal e outros que tais. Spínola? Nicht. Otelo? Nicht. Mário Soares? Também não merecia o brinde. Passaram a noite nisto, da hora de jantar à uma da manhã. Até o chamado “grupo dos nove”, um movimento de oficiais do Movimento das Forças Armadas que se opunha à esquerda revolucionária, ele conhecia. “Apanhámos uma borracheira desgraçada”, diz Sá Fernandes.

Assediados

Uma questão prática obrigava-os a partir outra vez, agora em direcção à Roménia: se ficassem mais de 48 horas num destes países de Leste tinham de trocar dez dólares ao dia nas casas oficiais de câmbios. Era uma forma de combater o mercado negro de divisas, ao qual os recém-formados em Direito de resto já haviam recorrido, por se revelar mais vantajoso para as suas apertadas finanças.

Um engano na compra dos bilhetes de comboio obrigou-os a passar a fronteira a pé, e do lado de lá depararam-se com a verdadeira União Soviética em toda a sua força e esplendor: polícia armada de metralhadoras, cães e tudo. “Parecia que estavam à espera de uma invasão.” Foi contra as ordens dos guardas romenos que Sá Fernandes voltou ao posto fronteiriço da Bulgária para ir buscar um grande boião de pêssegos em calda de que se tinha esquecido momentos antes. “Os guardas começaram aos gritos, mas aquilo garantia-nos a sobremesa para quatro dias. Podia ter dado para o torto”, equaciona.

Apesar de granjear alguma simpatia no Ocidente, o regime de Ceausescu revelou-se-lhes muito diferente daquele que esperavam, ao ponto de os seus relatos terem mais tarde esbarrado na incredulidade dos amigos que tinham deixado em Portugal. O aborto era punido, e as raparigas estavam proibidas de falar com estrangeiros. Faziam-no, mas às escondidas. Motivo? “A obsessão de Ceausescu com a natalidade. Se falassem com estrangeiros podiam casar com eles e querer ir-se embora do país.”

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“Esfomeados, com pouco dinheiro e desesperados, fomos à embaixada tentar falar com alguém”, prossegue o advogado. Saiu-lhes a sorte grande: um adido da embaixada recolheu-os em casa e ainda os levou a jantar a um restaurante de luxo. Sá Fernandes lembra-se de haver música ao vivo, violinos, que tocavam uma melodia cigana. A convite do diplomata ainda foram a um casamento no dia seguinte. “A Roménia foi uma desbunda”, assinala. “E as raparigas eram encantadoras”. O melhor ainda estava para vir: Budapeste, onde havia “húngaras lindíssimas”. “Foi o país do mundo em que vi as mulheres mais bonitas”, diz. Novos amigos, novo albergue. Desta vez, foi um rapaz que conheceram numa discoteca que os levou para casa. Morava com os pais numa vivenda, parte da qual, o rés-do-chão, tinham tido de ceder a outra família. “A Bulgária era uma sociedade pacificada. Mas a Hungria puxava claramente para Ocidente. Percebia-se que não era possível manter aquele bloco muito mais tempo.”

Seguiram-se duas paragens que os depenaram financeiramente, Viena — onde se alimentaram a cachorros e Coca-Cola — e depois Genebra. Voltaram para França e daí apanharam boleia para Andorra, onde queriam comprar uma máquina fotográfica. Nada feito: já não tinham como pagá-la.

A última paragem foi Barcelona. O advogado não se lembra de alguma vez ter telefonado aos pais ao longo desta viagem iniciática: “Mandava-lhes postais.” E foi na Praça da Catalunha, no topo das Ramblas, que os dois viajantes dormiram pela primeira vez nas suas vidas ao relento, num banco de jardim. Estavam falidos. Quando percebeu que era um local de prostituição masculina, “o Mário não pregou olho”, não fosse o diabo tecê-las.

“Fomos um bocado assediados”, reconhece, acrescentando que isso não o impediu de dormir a sono solto. Meteram-se no comboio para Lisboa, e como a sorte favorece os audazes no seu compartimento seguiam também umas espanholas que os alimentaram como se fossem seus filhos. “Levavam um tacho com arroz de frango e foi um banquete.” Só faltava uma coisa: tinham apanhado um comboio rápido em que era cobrada uma taxa suplementar de velocidade. “Meti na cabeça que as convencia a pagar.” E não é que conseguiu mesmo?

Da barba que deixara crescer durante a viagem ostentava agora apenas um vistoso bigode. “A minha mãe e os meus irmãos odiaram.” Acabou por o rapar, e dali a dois ou três anos casou-se. A viagem, essa nunca a esquecerá: “Foi um momento muito feliz da minha vida.”

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Em Veneza, a cidade que mais deslumbrou Ricardo Sá Fernandes DR
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