O turismo rural

A anexação do ambiente rural pelo turismo é muito mais do que uma homenagem ao kitsch, é o culminar de uma história da paisagem.

O século XVI inventou a paisagem, no sentido moderno do termo; o final do século XX inventou a forma de ocupação turística de uma paisagem, o ambiente da ruralidade, a que se dá o nome de turismo rural. O turista em busca do locus amoenus da ruralidade entra num jogo cujas convenções ele sabe que deve respeitar para não quebrar o encanto, para poder imaginar que empreende uma viagem a um território que proporciona uma percepção dos arquétipos. O turismo rural é o mais alto louvor que se pode entoar ao kitsch. E actualmente, falando com as gentes e lendo os anúncios de compra e venda de propriedades rurais, percebemos que o turismo rural tem um efeito na transformação do olhar colectivo das populações sobre as características físico-ambientais do seu próprio “país” (no sentido que esta palavra tem noutras línguas latinas: pays, em francês, paese, em italiano, onde é mais evidente a relação semântica com “paisagem”). Os fenómenos de “artialização” in visu, isto é, o papel decisivo dos artistas (e muito especialmente dos pintores) na transformação do olhar colectivo, são hoje em grande medida um efeito do turismo rural. Os camponeses, os que restam, começam a ter um olhar exterior e urbano sobre o seu ambiente ”natural” (entre aspas, como é fácil perceber), e dentro de algum tempo se lhes perguntarem onde vivem eles dirão que vivem no país rural. Assim aconteceu com os alentejanos que vivem junto ao mar: começaram a dizer desde há alguns anos que vivem no litoral alentejano, designação também inventada pelo turismo, por uma elite urbana que começou a passar férias na costa e transformou toda a economia e a paisagem locais. Até esse altura, excepto nalguns sítios piscatórios ou numa ou outra vila — Sines, por exemplo — aonde se ia “a banhos” alguns dias no Verão (o que obedecia a rituais complicados e a múltiplas precauções, não fossem os “ares fortes” do mar provocar danos à saúde) podia-se dizer que o Alentejo acabava onde ainda nem se avistava o oceano.

O  modo de aquisição cultural da paisagem através do turismo rural (em boa verdade, a natureza é sempre uma função da cultura) requer que se imite a natureza para a limitar. A natureza tem de ser contida na sua desordem e nas suas manifestações exorbitantes para que o modelo paradisíaco seja assegurado. Pode ser que o turista rural tenha uma vaga ideia de que a natureza é muito avara a conceder bem-estar, mas ali, no empreendimento turístico onde o campo foi domesticado, colonizado e anexado à vida urbana, “tout est calme, luxe et volupté” (Baudelaire). Uma grande filósofa da paisagem e socióloga do turismo rural, de nome Espírito Santo, pronunciou há alguns anos, do seu posto de observação na Comporta, uma frase de grande alcance nesta matéria: “É como brincar aos pobrezinhos”. O turismo rural é uma brincadeira do mesmo tipo, mas de sinal inverso: é um fazer de conta que a natureza é rica e confortável. E é uma forma de estetismo que teria horrorizado o supremo esteta que foi Oscar Wilde. Um grande antropólogo e historiador italiano, Piero Camporesi (1926-1997), que dedicou à invenção do campo italiano, no século XVI, uma obra notável (Le belle contrade: nascita del paesaggio italiano), mostrou que a imagem preponderante na sensibilidade estética foi a do “paese giardino”, a do idílio campestre, extensão do jardim do Éden. E assim vemos como o turismo rural, na sua suprema destinação kitsch, subsume uma história estética da natureza. Devemos colocá-lo do lado do canto nostálgico e elegíaco? Nem pensar, ele é uma celebração jubilante do fim dessa coisa que já só existe para ser aposta ao substantivo “turismo”: turismo rural.  

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