Rúben recebeu uma indemnização, mas preferia ver iraquianos condenados

Foi há precisamente um ano que os dois filhos do embaixador do Iraque em Lisboa foram detidos pela agressão de um jovem de 15 anos em Ponte de Sor. Horas depois eram libertados por terem imunidade diplomática.

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Miguel Manso

Daquela noite, Rúben Cavaco de pouco ou quase nada se lembra. “Muitas vezes tentei, e não dá.” Por isso o que conta dessa noite nesta manhã de Agosto, na casa da mãe em Ponte de Sor, é o mesmo que contou à Polícia Judiciária, em Lisboa. Foi ouvido duas semanas depois de ter saído do Hospital de Santa Maria, a 2 de Setembro do ano passado, quando iniciou um longo processo de recuperação. Para ele, o caso está longe de ter ficado bem resolvido.

“A única coisa que eu queria mesmo era que eles tivessem pago pelo que fizeram, que tivessem sido condenados”, diz Rúben Cavaco a duas semanas de completar 17 anos.

Ainda tinha 15 anos, quando foi agredido, na madrugada de 17 de Agosto de 2016. Caminhava sozinho depois de uma noite que acabara mal no bar Koppus. Os amigos tinham agredido e sido agredidos por dois desconhecidos que mais tarde viriam a ser identificados como os filhos gémeos de 17 anos do então embaixador do Iraque em Lisboa. Rúben não se envolvera. À chegada da GNR, o grupo dispersara e os jovens iraquianos eram levados a casa pela GNR, por estarem a conduzir sem carta e com um nível de álcool no sangue não permitido para quem conduz. Mas voltariam a sair, num Mercedes preto que dava nas vistas.

Rúben, por seu lado, também voltara a sair – depois de passar pela casa da namorada – para ir ter com os amigos, nas bombas da BP, onde costumavam acabar a noite. Lembra-se de ter chegado à Telepizza, com as suas luzes, quando tudo o que o rodeava se apagou. “Apaguei”. Os dois jovens iraquianos da rixa no bar surpreenderam-no sozinho, antes de serem eles surpreendidos pelos homens da recolha do lixo. Os dois suspeitos correram para o carro e fugiram do local da agressão pela qual os dois foram indiciados pelo Ministério Público pelo crime de tentativa de homicídio. Mas não foram sequer constituídos arguidos, beneficiaram de imunidade diplomática por serem filhos do embaixador do Iraque em Portugal.

Não é fácil para Rúben falar e reviver o episódio que o colocou no centro de um dos assuntos noticiosos mais marcantes do Verão do ano passado. “É complicado falar, porque foi o caso que foi.” Começou por recusar o pedido para esta entrevista. “Mas falo para acabar mesmo com tudo, para ficarmos descansados.” Quer finalmente virar costas a um trauma, vivido por dentro de uma forma que não deixa transparecer para fora.

Numa coisa insiste: “Eles serem condenados teria sido a forma mais justa de resolver a situação. Eu recebi a indemnização, mas eles [os dois iraquianos] continuam a rir-se [do que fizeram] e eu é que passei por isso tudo. Se tivessem sido punidos pelo que fizeram, não se riam neste momento. O mundo é assim. Eles aproveitam-se de mais do que têm. E aproveitaram-se da imunidade para conduzir sem carta, sob o efeito do álcool, para bater.”

Preparada para a perda

O tentar não dar importância ao que aconteceu é uma defesa, um refúgio para Rúben, diz a mãe, Vilma Pires. Para ela, que durante uma semana se convenceu que o poderia perder, foi como morrer. A vida parou e o Verão do ano passado fez crescer dentro dela o medo latente pela vida dos filhos. Deixou de ter certezas. “Nunca mais se é a mesma pessoa. Por muito que se tente.”  

Diz isto, falando de si mesma – e não do filho que se sente o mesmo Rúben, com menos amigos, uma nova namorada, e uma vida refeita em Lisboa – ela que esteve noite e dia, sem dormir, sem comer, ao lado do filho, nos primeiros sete dias em que o coma induzido dele se confundiu com o seu próprio estado anestesiado de dor. Os médicos não lhe davam nem lhe levavam as esperanças.

As primeiras palavras do médico do INEM, em Ponte de Sor, são lembradas como se ditas hoje: “Vá preparada porque o caso do Rúben é muito grave.” E Vilma não sabe como fez, fez como pôde, e seguiu de carro até Lisboa, enquanto o filho inanimado era levado de helicóptero para o Hospital de Santa Maria.

Quando saiu, mais de duas semanas depois, “não queria amparos mas mal conseguia andar”, diz Rúben. Forçou-se a reencontrar as suas forças. Com o tempo, e aos poucos, foi recuperando a memória. A falta dela é como um vazio que se preenche aos poucos, sem se saber quando está completa. Não tem pressa. Para quem quase morreu e renasceu a duas semanas de fazer 16 anos, a vida é vivida com calma. Um dia, quando tiver 18 anos, pensa em trabalhar. Quer ser barbeiro. Este ano, retomou a vida e os estudos em Lisboa e vive em casa dos avós.

Em Outubro, ainda tinha sequelas mas os resultados dos exames médicos permitiam concluir que iria recuperar completamente. Só em Dezembro se reconheceu plenamente, quando viu desaparecer da face e do corpo as marcas da violência e das operações.

Vilma está grata por tudo o que foi bem feito, desde os cuidados recebidos pelo filho da equipa do INEM, à rápida transferência de helicóptero para Lisboa, onde no Hospital de Santa Maria foi imediatamente operado ao coágulo no cérebro e lhe foi reconstituída a face, depois das fracturas múltiplas que sofreu. Uma coisa destas “muda tudo”, diz Vilma Pires. “Não sei explicar.”

"Como morto na estrada"

De voz embargada, Vilma Pires aceita recordar: “Nessa noite, o Rúben saiu com os amigos. Eu mandei-lhe uma mensagem a perguntar onde é que ele estava, e ele respondeu a dizer que estava em casa de um amigo. E eu respondi-lhe: ‘Ok filho, então não demores muito.’ Fui deitar-me e fui acordada por um amigo do Rúben aos murros na janela a dizer: ‘Dona Vilma, venha, que o Rúben está como morto na estrada.’ Eu levantei-me, saí, agarrei no carro sem saber para onde ia. Assim que cheguei à rotunda vi os carros da GNR, foi onde eu parei, e vi o Rúben. Estava inanimado.”

O filho agora está bem. “Está vivo”, diz Vilma que tem o nome do filho mais velho gravado numa tatuagem no pulso e o mais novo, de dois anos, ao colo. “O tempo acalma mas ainda passou pouco tempo.”

À dor, junta-se a mágoa de quem sente que não viu justiça. “Como é que um caso de agressão tão violenta como esta fica resolvido com uma indemnização? O que é que o dinheiro paga? Paga o sofrimento que o meu filho teve, que eu tive, por tudo aquilo que passámos?”, diz emocionada. “Vai apagar tudo? O dinheiro apaga essas marcas? O caso ser resolvido era eles serem condenados em Portugal, e não no Iraque. As pessoas pensam que a indemnização pôs fim a tudo. Só quem passa por elas sabe. Isto é uma coisa que vai ficar para a vida toda.”

Em Ponte de Sor, há precisamente um ano, muitas pessoas se apressaram a defender Rúben, alto e bom som, prometendo que justiça seria feita – de uma ou de outra forma. Agora, mudam o tom, para dizer que Rúben é um privilegiado que beneficiou de uma indemnização de 40 mil euros (a que acresceram os 12 mil euros de despesas hospitalares pagos pelo embaixador Saad Mohammed Ridha). Também por isso, mas não apenas por isso, Rúben escolheu viver em Lisboa, longe daquela “terrinha onde as pessoas falam sem saber, às vezes falam até de mais”.

E para os comentários maldizentes que ele e a mãe têm suportado, na rua ou nas redes sociais, a sua resposta é clara: “Eu não queria dinheiro. O que queria mesmo é que eles tivessem sido condenados. Eu preferia que eles tivessem sido condenados pelo que me fizeram do que receber alguma coisa. Não foi uma chapada ou duas. Se tivesse sido uma chapada ou duas, se fosse preciso, até eu dava. Agora fazer o que eles fizeram, acho que não era capaz.”

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