A vida de um arquitecto

Pedro Burgos explora a construção e a cidade num conto em banda desenhada.

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A arquitectura, como metonímia da construção e da criação, permanece na origem da banda desenhada de Pedro Burgos

Quem guarda na memória Crónicas de arquitectura (Mundo Fantasma/Turbina) de Pedro Burgos recordar-se-á do que neste suplemento se escreveu, há quatro anos, a propósito desse livro. Compunha-se de histórias curtas que ofereciam uma reflexão, plena de humor e de dúvida, sobre a actividade profissional da arquitectura, comentando a crise financeira, os sonhos da juventude e a obsolescência dos homens face à tecnologia. Le collectionneur de briques, o novo livro deste autor de BD, arquitecto e ilustrador surge, em termos temáticos e, sobretudo, formais, como outro objecto. Trata-se de um conto, no qual se acompanham personagens, conflitos e peripécias numa só narrativa. Assinalada a novidade, Le collectioneur de briques (com edição francesa, pela 6 Pieds Sous Terre) não abandona a arquitectura. Se a cidade, alterada pelos efeitos da crise financeira e da mercantilização (o desemprego, a gentrificação, a especulação imobiliária), é o lugar e o pano de fundo em que o conto se desenrola, a arquitectura, como metonímia da construção e da criação, permanece na origem da banda desenhada de Pedro Burgos.

Valério, homem que já ultrapassou a meia-idade, fica sem emprego após o fecho do ateliê de arquitectura onde trabalhava. Decide, então, reabilitar a casa herdada dos avós para descobrir, incrédulo e revoltado, que foi ocupada por homens e mulheres sem-abrigo. Reagirá com violência, antes de perder os sentidos. Começa aí a sua derrocada existencial e espiritual: acordará, salvo pelos médicos, mas para se afastar do mundo (a cidade, cujo nome Pedro Burgos só revelará no fim), tornando-se no coleccionador de tijolos que os vizinhos e família observarão com piedade, receio e incompreensão. Na tenacidade lenta do seu transe, vai construindo, tijolo sobre tijolo, no pátio da casa, o que parece ser um refúgio, provocando a irritação do genro, um vendedor imobiliário que não desiste de fazer negócio com o prédio. Só em Chiara, uma assistente social que não o abandonará, encontra consolo, compreensão e amor.

A esta narrativa, o desenho de Pedro Burgos confere uma tangibilidade humana. O desenho ora estilizado, ora arredondado, a presença das linhas e dos quadriculados (a preencherem os rostos, os corpos, as superfícies) representam e comunicam a fragilidade das situações e das personagens. A cidade de Le Collectioneur de Briques, da qual se libertam desabafos e temores anónimos, nunca chega a ser impessoal. É um lugar, com as suas ruas e passeios, habitado por idosos ou figuras à beira do desaparecimento, que o leitor percorre sobre as páginas, a maioria das quais dispensa a geometria tradicional das vinhetas. Não faltam, aliás, pranchas em que as cenas se sobrepõem ou se juntam numa fluidez que deixa o olhar livre para explorar o desenho e a narrativa. A página, como em Crónicas da arquitectura, continua a ser um todo espacial, ao serviço das acções e dos movimentos que o desenho faz.

Um do momentos que contrariam essa abordagem encontra-se nas vinhetas horizontais que consagradas ao trabalho lento e paciente de Valério: o teimoso arquitecto trabalha ao som de Night and Day, de Cole Porter, indiferente à curiosidade e aos protestos dos vizinhos. A sua construção, contudo, não se concluirá numa casa ou num lugar habitável. Assemelhar-se-á antes a um muro, a um conjunto de paredes que guardam labirintos, a uma edificação de tijolos hostil a qualquer vivência humana. A construção em que, obcecado, se empenhara, e que parecia um acto de resistência, resulta afinal num fechamento face ao mundo. Mas a imprevisibilidade das acções humanas alterará, no fim, o que prometia ser um desfecho funesto. Os tijolos ganharão outro uso (e significado) e o arquitecto, salvo pela solidariedade e pelo amor, regressará à cidade antes de partir em viagem. As palavras finais (de uma irónica melancolia) pertencem a Chiara que lhe pede um último olhar sobre a paisagem: “(…) Cá serait dommage de perdre cette vue sur Lisbonne. Regarde…”

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