Vacina contra a “droga dos jihadistas” funciona em ratinhos

Tem havido várias tentativas de criar vacinas contra várias drogas. Agora está a desenvolver-se a primeira contra a fenetilina, uma substância popular no Médio Oriente. Se a vacina vier a funcionar nos humanos, poderá diminuir os efeitos psicoactivos desta droga.

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Combatente do Daesh na Síria: a fenetilina tem sido muito usado por grupos armados no Médio Oriente Khalil Ashawi/Reuters

Chama-se fenetilina (ou Captagon, na sua designação comercial), é uma droga psicoestimulante e a sua utilização tem crescido no Médio Oriente. Nos últimos anos, passou a ser mesmo conhecida como “droga dos jihadistas”, por ter sido usada pelo autoproclamado Estado Islâmico na guerra na Síria. Para se tentar combater os efeitos desta droga, cientistas dos Estados Unidos estão a desenvolver uma vacina. Os primeiros resultados estão agora à vista na revista Nature desta quinta-feira: a vacina foi testada com sucesso em ratinhos toxicodependentes.

A fenetilina é uma anfetamina, ou seja, uma substância que estimula o sistema nervoso central. Foi sintetizada e comercializada pela primeira vez nos anos 60. Na altura, era usada para tratamento da hiperactividade, narcolepsia ou depressão. Mas em 1986 o seu uso foi proibido pela Organização Mundial da Saúde por provocar grande dependência. Tal como outras substâncias estimulantes, a fenetilina aumenta a energia, o poder de concentração, o vigor físico, a resistência ao cansaço, inibe o sono e reduz o apetite. E pode ser tomada por via oral ou intravenosa. Ao longo do tempo, provoca dependência psicológica e física.

“A nível europeu, a sua utilização é residual e não constitui um problema nem uma preocupação relativamente a outras drogas mais clássicas”, refere Félix Carvalho, professor catedrático de toxicologia na Faculdade de Farmácia da Universidade do Porto (que não fez parte deste estudo).

Em Portugal, não se sabe ao certo quantas pessoas tomam fenetilina. No relatório anual de 2015 do Serviço de Intervenção nos Comportamentos Aditivos e Toxicodependências (SICAD), esta substância está incluída na classe dos estimulantes (excluindo aqui a cocaína). Por isso, nesses dados estão todas as pessoas que recorreram aos centros de tratamento do Estado em 2015 devido ao uso de estimulantes (entre 26.993 pessoas, 33 consumiram estimulantes), pelo que pode nem sequer ter havido o consumo de fenetilina.

Já no Médio Oriente e no Norte de África, o seu uso tem vindo a crescer como droga recreativa (por exemplo, em festas) e no contexto de guerra. “Em 2013, foram apreendidos 12,3 milhões de comprimidos Captagon perto da fronteira entre o Líbano e a Síria”, relata um artigo científico de Janeiro de 2016 na revista Addiction. “Em 2014, foram aprendidos 29 milhões de comprimidos rotulados como Captagon no Dubai, e as autoridades turcas apreenderem sete milhões de comprimidos a ir da Síria para a Arábia Saudita”, acrescentava o artigo.

Foi também nesse ano que a reportagem da BBC “Captagon: A droga da guerra da Síria” mostrou o uso da fenetilina no conflito e a partir daí ficou conhecida como a “droga dos jihadistas”. Esta droga permite que os combatentes aumentem o seu estado de alerta, não tendo necessidade de dormir, e de resistirem melhor à dor. O Relatório Mundial das Drogas 2017, do Gabinete das Nações Unidas contra as Drogas e o Crime, refere que houve relatos nos media e de fontes oficiais de que o Daesh e outros grupos armados, que actuam em países como a Síria, produziam e consumiam Captagon. O artigo científico na Nature refere mesmo que o uso da substância está ligado ao “farmacoterrorismo” e que 40% dos consumidores de droga dos 12 aos 22 anos na Arábia Saudita são dependentes da fenetilina.

Aliás, foi o crescimento do seu uso no Médio Oriente que levou a equipa coordenada por Kim Janda, do Instituto de Investigação Scripps, nos Estados Unidos, a desenvolver uma vacina contra a fenetilina. Kim Janda recorda, segundo um comunicado daquela instituição, que o uso de anfetaminas na guerra não é novo: “Os alemães usaram anfetaminas na II Guerra Mundial para ajudar os seus militares a ficarem acordados durante longos períodos. Então, questionámo-nos por que é que o Captagon tem sido usado no Médio Oriente em vez das típicas anfetaminas, que são mais fáceis de sintetizar.”

Para desvendar esta substância tão complexa e desenvolver a vacina, a equipa usou um método chamado “dissecação através da vacinação” para separar os dois compostos presentes na fenetilina: a anfetamina e a teofilina. “É uma forma de se compreender os efeitos psicoactivos de cada um”, refere Félix Carvalho.

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Modelo da molécula da fenetilina DR

E tal como noutras vacinas, os cientistas conjugaram a fenetilina com uma proteína, a hemocianina, que tem cobre na sua composição e existe no sangue de muitos moluscos e artrópodes. “Esta proteína é altamente imunogénica, com elevada capacidade para originar a produção de anticorpos específicos. E tem sido utilizada nos estudos realizados anteriormente no desenvolvimento de vacinas para outras drogas [ilegais] e para a nicotina e o álcool”, frisa Félix Carvalho. A proteína desencadeou assim a produção de anticorpos que reconheceram a estrutura da fenetilina e os seus componentes.

Depois, os cientistas ainda conjugaram a proteína apenas com a anfetamina ou com a teofilina, para que os anticorpos reconhecessem apenas cada um dos compostos. O que é que aconteceu? “Sequestra-se a droga e impede-se a sua passagem para o cérebro, diminuindo o seu efeito psicoestimulante.” E foi isso que se passou com os ratinhos viciados em drogas: na presença de anticorpos contra a fenetilina, o efeito psicoestimulante diminuiu significativamente. 

Vacinas contra drogas? “Seria o ideal”

“Neste trabalho, fez-se algo semelhante ao que tem sido realizado com outras drogas de abuso”, salienta Félix Carvalho. A investigação científica à procura de vacinas contra o uso de drogas já não é uma ideia nova e até tem havido ensaios clínicos (em pessoas). Há estudos para a cocaína, a metanfetamina, a nicotina ou o próprio álcool. “A eficácia que tem sido encontrada para todas estas drogas, depois já nos ensaios clínicos, é, na melhor das hipóteses, marginal.”

Aliás, a equipa de Kim Janda já tinha realizado com sucesso testes pré-clínicos em macacos rhesus para uma vacina contra a heroína. Os resultados foram publicados em Junho. “Esta é a primeira vacina contra um opióide que passou a fase dos testes pré-clínicos”, refere a equipa num comunicado da sua instituição. 

Falta agora que uma das vacinas experimentais consiga passar para lá da fase dos ensaios clínicos. “O problema que se tem verificado nos últimos ensaios clínicos é que a quantidade de anticorpos que se têm desenvolvido é relativamente baixa”, explica Félix Carvalho. 

Como seria, se tivéssemos acesso a estas vacinas? “Seria um tratamento eficaz e a longo termo para os dependentes. Não só para as drogas, mas também para o tabaco e o alcoolismo”, refere Félix Carvalho. Como as drogas deixariam de ter os efeitos pretendidos, perderiam interesse para os seus consumidores. No caso da fenetilina, não havendo uma vacina, por agora apenas se pode tratar os sintomas. “Quem está dependente e pretende tratar-se, o ideal seria através de uma vacina.”

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