José Tanganho – o herói do povo que ganhou a Volta a Portugal a cavalo

Nesta terça-feira termina a volta ao país em bicicleta. Há quase um século, o percurso foi feito a cavalo. Disputando o primeiro lugar com oficiais do Exército, José Tanganho foi o herói do povo.

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Esquecido hoje, mas aclamado no seu tempo, José Tanganho ficou famoso por ter vencido a Volta a Portugal a cavalo em 1925. Foram 1458 quilómetros percorridos em 25 dias num país que mal tinha estradas e onde cada cavaleiro levava uma arma para se defender dos assaltantes ou abater o cavalo ferido. O herói do povo ia quase sempre à frente, ganhava etapas, mas, curiosamente, não cortou a meta em primeiro lugar. Dos 39 cavaleiros, só três concluíram a prova.

Lisboa, 10 de Outubro de 1925. No Jockey Club, no Campo Grande, ultimam-se os preparativos para a partida. Dos 43 inscritos, quatro não compareceram. Os 39 cavaleiros passam pelo hospital veterinário de campanha para pesagem e exame dos cavalos. Dignitários da jovem República estão presentes: os ministros da Guerra e da Agricultura, o Chefe do Estado Maior do Exército, o comandante da GNR, o governador civil e o presidente da Câmara de Lisboa. A iniciativa do Diário de Notícias de organizar a I Volta a Portugal a cavalo conta com o apoio do regime e vai traduzir-se num êxito: a população vai segui-la entusiasmada pelas páginas dos jornais e grande parte vai mesmo aplaudi-la pessoalmente porque a prova passa por 70 vilas e cidades do país.

Mas para já são os lisboetas que, sob chuva intensa, assistem à passagem da caravana pelo Rossio, rua Garrett, Alecrim e Cais do Sodré onde esta embarca em dois vapores para Cacilhas. A prova só agora vai começar e a primeira etapa será de Cacilhas a Setúbal.

Caldas da Rainha, 10 de Agosto de 2017. Mário Lino, autor do livro José Tanganho na Volta a Portugal, fala animadamente sobre as 70 etapas deste epopeia. “A primeira volta a Portugal em bicicleta ocorre em 1927, dois anos depois da volta a cavalo. É também organizada pelo Diário de Notícias, com o mesmo itinerário e até com o mesmo número de concorrentes”, diz o também director do Museu do Ciclismo. “A volta a Portugal em bicicleta teve origem nesta volta a cavalo e pode-se dizer que José Tanganho foi tão importante para a época como mais tarde o Joaquim Agostinho, o Alves Barbosa, ou até o Eusébio no futebol”.

Depois de Setúbal as duas voltas vão passar por Alcácer, Odemira, Silves, Faro, S. Brás de Alportel, Beja, Évora, Portalegre, Castelo Branco, Covilhã, Guarda, Bragança, Chaves, Braga, Monção, Viana do Castelo, Porto, Coimbra, Caldas da Rainha e Santarém até chegarem novamente a Lisboa. “Não sei porquê, mas muitas das etapas eram feitas de noite. Há relatos de dias e noites chuvosos, autênticas tempestades que fustigavam os cavaleiros nos meio das serranias, dos penhascos, em bosques. Não admira que só três tenham conseguido terminar a prova”.

No seu livro, Mário Lino diz que José Tanganho se destaca logo no início como favorito. Pelo Alentejo litoral abaixo e depois pelo interior para cima, o caldense vai acompanhado de um quase conterrâneo, o bombarralense Germano Rodrigues que é também um dos poucos cavaleiros civis.

O resto eram oficiais do Exército. Alferes, tenentes e capitães. Tinham o apoio de veterinários e alguns eram eles próprios oficiais veterinários. Daí a preferência do povo por José Tanganho e pelo seu cavalo, o Favorito. Em 1925, no estertor da I República, fartos de revoluções e golpes de Estado, os portugueses não morriam de amores pelos militares e simpatizavam claramente com um civil de origem humildes que disputava o pódio com os chamados “scientíficos” que possuíam cartas militares e conhecimentos técnicos para enfrentar a prova. Aliás, entre os 39 cavaleiros, só Tanganho e mais dois eram civis.

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Setúbal, 10 de Outubro de 1925. É com estralejar de foguetes à mistura com o som da Banda do Regimento de Infantaria 11 que a cidade acolhe, em apoteose, toda a caravana da primeira grande prova desportiva nacional. Saídos de Cacilhas às 13h43, os cavaleiros passaram pelo controle de Azeitão às 16h22 e chegaram à beira do Sado ao fim da tarde, tendo a comissão organizadora oferecido o jantar. Contudo, às 20h40, José Tanganho, Germano Domingues e mais dois cavaleiros arrancam logo para o próximo controlo em Alcácer do Sal e prosseguiram noite fora para Grândola.

A dupla Tanganho e Germano será a primeira a chegar a Faro quatro dias depois, com duas horas de avanço sobre o tenente Brandão de Brito e o capitão Rogério Tavares. Este última viria, duas semanas depois a disputar mano a mano a vitória da prova com José Tanganho.

Na chegada a Mértola, José Tanganho é o primeiro. E será também o primeiro a chegar a Beja a 17 de Outubro após uma travessia do Alentejo sob intensa chuva. A caravana, cada vez com mais baixas, prossegue por Évora, Elvas, Portalegre. O caldense continua a dar nas vistas, mas na Beira Baixa perde a primeira posição, vindo a recuperá-la em Castelo Branco.

Cavalgando noite e dia, sob condições duríssimas, cavalos e cavaleiros arribam à Covilhã na manhã de 20 de Outubro. O “pelotão” da frente é composto por José Tanganho e três capitães. Partem depois de dez minutos de descanso para a Guarda onde chegam às 17h50. Mas não param: às 23h12 entram em Celorico da Beira. O grupo seguinte só ali chega às 11h30 do dia seguinte, com 13 horas de atraso.

Por esta altura, José Tanganho reúne um consenso quase nacional. É vencedor em Foz Côa e vai disputando o primeiro lugar em cada etapa com os outros três fugitivos.

Em 22 de Outubro, o caldense é o segundo dos quatro a chegar a Bragança. A partir daqui serão só três porque o cavalo do capitão Ramires adoece. As crónicas da época dizem que “com enorme temporal à mistura, chegaram a Chaves totalmente encharcados devido à luta que travaram contra o mau tempo”.

A meteorologia, com chuvas intensas e trovoadas (há relatos de relâmpagos que iluminam as figuras fantasmagóricas dos cavaleiros isolados na serrania) é inclemente e explica muitas desistências.

Em Chaves, Tanganho amealha mais uma vitória (e a respectiva recepção apoteótica), mas Mário Lino relata no seu livro que nessa noite dormiria junto do seu cavalo, enquanto o tenente Brandão e o capitão Rogério Tavares, a convite da empresa de águas Pedras Salgadas, jantaram e pernoitaram na estância termal.

O trio continua fugido de um pelotão cada vez mais disperso e desalinhado. Passa por Vila Real, Penafiel, Guimarães e é recebido em Braga por 5000 pessoas no dia 27 de Outubro. Os três disputam as etapas de Monção a Valença e Viana do Castelo, onde José Tanganho é o primeiro, terminando assim a parte da prova de velocidade controlada. Daí até Lisboa, e após um dia de descanso, a prova de velocidade livre ditaria o vencedor.

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Viana do Castelo, 31 de Outubro de 1925. Dos 39 participantes que saíram de Lisboa, só nove alinham para o tiro de partida em Viana do Castelo. O capitão Xavier Frasão toma a dianteira e é o primeiro na Póvoa do Varzim, em Vila do Conde e na chegada ao Porto.

José Tanganho fica para trás. O seu Favorito teve vários “furos” e até à Invicta teve de ser ferrado quatro vezes. Mas a partir daqui o caldense torna-se imparável e há-de fazer os 260 quilómetros entre Viana e Condeixa sem parar durante um dia, uma noite e parte de um dia. 

Em Coimbra, no dia 1 de Novembro, Tanganho leva cinco horas de avanço e cruza o Mondego às 9h40. Às 11h35 está em Pombal com sete horas de avanço sobre os seus perseguidores.

A cerca de 200 quilómetros de Lisboa tudo parecia fácil. Mas haveria surpresas. Em Alcobaça, o “camisola amarela” da volta a cavalo demora-se mais do que o previsto na calorosa recepção de que foi alvo. E nas Caldas da Rainha, sua terra natal, onde chega às 12h44 do dia 2 de Novembro, o filho da terra é abraçado numa alegria contagiante. Perde tempo. O capitão Rogério Tavares, montado no Emir, encurta a distância e dispõe-se a lutar pelo título.

Tanganho é ainda o primeiro em Rio Maior e também em Santarém, mas perde tempo com os festejos de que é alvo. O pior é no Cartaxo. O comerciante António Rosa, proprietário do Favorito, faz festa rija e oferece a totalidade do champanhe consumido na vila durante a recepção ao cavaleiro.

O capitão Rogério Tavares aproxima-se. José Tanganho é ultrapassado.

Caldas da Rainha, 11 de Agosto de 2017. A redacção da Gazeta das Caldas comporta um colecção de jornais encadernados ao longo de 90 anos. Parte da memória da cidade está ali, nas folhas de papel amarelecidas. A Gazeta de 5/11/1925 relata para os lados do Ribatejo “uma noite estranha, de febre e de presságios, de neblina intensa e profunda” onde “os faroes dos automóveis recortavam sombras fantásticas numa multidão em delírio”.

“Vai-se para o Cartaxo, a noite é maior ainda. Os automóveis ameaçam a cada momento desconjuntar-se, aos repelões, saltando aqui, mergulhando acolá, contorcendo-se mais além. Quando chegámos já Tanganho lá estava, e, com ele, a mesma multidão que encontrámos em Santarém”.

Uma multidão composta de muitos automóveis e cavaleiros que acompanham os dois rivais da prova. “O capitão Rogério começa a perseguir o galope da montada de Tanganho. Seguimo-lo. Passáramos Vila Franca. Onde terminaria essa corrida louca? Os cavalos e os automóveis cada vez crescendo mais em número. A certa distancia vêm-se dois obeliscos. Estamos a chegar à Póvoa. Outro grito se ouve na mesma voz de timbre cheio:

  • Eh... Tanganho!...

E Tanganho olha, com olhos de criança ao ver um brinquedo partido. Ainda tem um ímpeto agitar-lhe os nervos rijos. Aperta o cavalo. Mas o pobre “Favorito” já tinha andado demais. Dócil até ali... Mas já não pode...

Tanganho afaga-o e apeia-se.

Entretanto o capitão Rogério não corre – voa, entre quatro camaradas [não participantes].

  • Pobre Tanganho!...

Lisboa, 4 de Novembro de 1925. Num esforço extremo para cavalo e cavaleiro, o capitão Rogério Tavares havia jurado “alcançar o Favorito ou estoirar”. E conseguiu-o. Será o primeiro a chegar a Lisboa com sete quilómetros de avanço sobre José Tanganho que cruza a meta a pé, com o cavalo pela trela, duas horas depois.

Os jornais da época dizem que o povo – que se juntara para aplaudir o cavaleiro civil – ficou em silêncio ao ver o militar chegar, mas que aplaudiu entusiástico o segundo a chegar a meta.

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Chegada às Caldas da Rainha

Escreve Mário Lino: “apesar de ultrapassado, o cavaleiro caldense voltou a demonstrar a sua postura de homem de grande lucidez e de pensamento arguto, o que contrastava com a fugaz euforia do cap. Rogério Tavares que correu, correu, sem encontrar a vitória”. É que o oficial do Exército não poupara o cavalo o suficiente participar na prova de saltos a realizar no dia seguinte e é nessa noite que se desenrola um dramático episódio – o Emir, exausto pelo galope da última etapa, morre o seu cavaleiro é desclassificado.

No dia seguinte são apenas três cavaleiros que participam na prova de saltos: José Tanganho, tenente Brandão de Brito e capitão Silva Dias, que ficam assim em primeiro, segundo e terceiro lugar, respectivamente. Houvesse mais uma desistência e sobraria um lugar no pódium.

José Tanganho é herói nacional.

Caldas da Rainha, 10 de Agosto de 2017. Conta Mário Lino: Tanganho era de origem modesta, mas não miserável. O seu pai tinha um negócio de aluguer de trens e galeras. O miúdo crescera entre os cavalos e acabaria a trabalhar para o maior mestre de equitação do país – Vitorino Fróis – que o aconselharia no treino do Favorito.

Para se preparar para a Volta, José Tanganho levava o cavalo para a Foz do Arelho, saltava para uma das bateiras e remava pela lagoa enquanto o Favorito era obrigado a nadar e a seguir o barco com o objectivo de “ganhar pulmão”. Depois, para poder alargar os músculos, com os cascos enterrados na areia, cavalgavam juntos criando um binómio sintonizado.

O cuidado com a montada levou a que grande parte dos 1458 quilómetros fossem feitos a pé. José Tanganho contou que em 25 dias rompeu três pares de botas.

A glória do cavaleiro durou ainda várias décadas. Durante algum tempo Tanganho foi contratado para se exibir no Coliseu de Lisboa e no Palácio de Cristal no Porto. Era bem pago. Recebeu a alternativa e tornou-se cavaleiro tauromáquico.

“Nas corridas onde ele participava os bilhetes esgotavam. Enchia as praças, mas não porque fosse um grande toureiro... Era médio, modesto. As pessoas queriam era ver o vencedor da Volta a Portugal a cavalo”, conta Mário Lino.

O herói torna-se amigo íntimo do mestre David Ribeiro Telles, com quem parte para Moçambique, em 1961 para fundar uma ganadaria. Regressa a Portugal em 1967 e morre no ano seguinte com 80 anos. Está sepultado em Coruche onde viveu os últimos tempos da sua vida. Nas Caldas da Rainha tem uma rua com o seu nome.

Nessa altura já só os mais velhos se recordavam do feito de José Tanganho. A Volta a Portugal a cavalo não mais se repetiria, substituída pela volta em bicicleta.

Caldas da Rainha, 12 de Agosto de 2017. Cristina Bernardo, 57 anos, abre uma caixa com recortes de jornais amarelecidos, alguns já desaparecidos como A Capital, o Diário Popular, O Século. Estão também o Diário de Notícias, A Bola, a Gazeta das Caldas. Todos trazem notícias do seu avô, José Tanganho, se bem que, na maioria, sejam reportagens realizadas décadas depois do feito de 1925, mas com o cavaleiro ainda vivo a dar o seu testemunho. Entre os documentos guardados está a caderneta com os carimbos, horas e observações sobre o “estado da montada” nos controlos da Volta a Portugal.

Cristina só viu o avô uma vez. Tinha nove anos quando foi com o pai ao Monte da Torrinha (Coruche) de onde guarda na memória um velhote muito magrinho deitado numa cama. José Tanganho tinha regressado poucas semanas antes de Moçambique e morreria dias depois.

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Homenagem nas Caldas

Deixou três filhos e uma filha, que também já morreram. Restam uma neta (Cristina Bernardo) e sete bisnetos.

O herói nacional não era uma figura simpática nem afável para a família. O homem dos cavalos e dos touros era-o também – naturalmente – das farras, dos copos e das mulheres.

Mas foi essa dureza e rusticidade que o ajudou a ganhar a volta a cavalo. “Uma volta singular, desordenada, cruel, desesperadora e heróica”, segundo um dos jornais que Cristina guarda na caixa. Uma volta na qual morreram 10 dos 39 cavalos, alguns abatidos pelos cavaleiros para lhes aliviar o sofrimento.

“O meu avô viveu nas Caldas e em Alfeizerão. Foi cá que nasceram os filhos, mas quando enviuvou, mudou-se para Coruche e lá casou pela segunda vez. Era íntimo do David Ribeiro Telles e continuou sempre ligado aos cavalos”, resume Cristina Bernardo, que tem o projecto de digitalizar o espólio das notícias sobre o avô, apesar de notar que os filhos e sobrinhos não se interessam especialmente pelo figura do seu bisavô que foi um herói nacional. 

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