É boa ideia fazer um check-up médico anual?

Há coisas inacreditáveis que são mesmo verdade e outras que parecem certas mas que não resistem a uma análise crítica. Fazer exames médicos de rotina, mesmo sem qualquer sintoma, parece uma boa ideia, mas na realidade pode causar mais problemas do que aqueles que previne.

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No final do século XX abundavam em Portugal campanhas que promoviam o auto-exame como forma de detecção precoce do cancro da mama. Como adolescente não ficava indiferente aos panfletos com instruções, que continham desenhos de mulheres com as mãos nas mamas, ou mesmo fotografias em que os mamilos apareciam encobertos. Hoje essas campanhas são marginais e não deveriam existir de todo. Apesar de o cancro da mama ser uma importante causa de mortalidade entre as mulheres e a detecção precoce de qualquer cancro ser uma vantagem, não há benefício no auto-exame. Isso mesmo mostrou uma revisão sistemática da literatura médica feita em 2003 pela Cochrane, uma colaboração internacional de cientistas que revêem voluntariamente a literatura médica.

Os autores tiveram em conta dois grandes estudos, que abrangeram 388.535 mulheres, divididas aleatoriamente em grupos que faziam ou não auto-exame mamário. Os dados mostraram que não havia uma redução de mortalidade por cancro da mama entre as mulheres que se auto-examinavam. O que havia era quase o dobro das biópsias, que são procedimentos médicos com riscos. Muitas mulheres foram submetidas a cirurgias desnecessárias, por causa de situações benignas que nunca iriam causar problemas. Os autores ressalvaram que as mulheres devem consultar um médico caso se deparem com uma alteração suspeita, mas não recomendam a realização periódica de auto-exames. Este caso ilustra os problemas que podem resultar da obsessão pela medicina preventiva: detecção de situações irrelevantes que levam a intervenções médicas desnecessárias, com um balanço desfavorável entre riscos e benefícios.

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O mesmo tipo de interrogações se pode levantar face aos exames de rotina anuais. Nestes check-ups, pessoas sem queixas são submetidas a um conjunto de exames médicos com o objectivo de detectarem doenças que ainda não se manifestaram, de modo a impedir o seu desenvolvimento ou melhorar o seu prognóstico. Ou simplesmente para se tranquilizarem. Parece fazer sentido. O problema é que por vezes estes exames resultam em diagnósticos supérfluos, incluindo muitos falsos positivos, acarretando com eles o risco de mais exames e tratamentos desnecessários. É raro uma bateria de exames de rotina salvar uma vida, mas pode desencadear uma cascata de procedimentos médicos invasivos. Há casos em que os riscos desses tratamentos são largamente superiores aos riscos de não tratar a condição clínica encontrada.

É isso que indicia uma revisão sistemática da literatura médica publicada em 2012, também pela Cochrane. Os autores levaram em conta 14 ensaios clínicos que abrangeram 182.880 pessoas, divididas em grupos que faziam ou não faziam check-ups regulares. Não foi encontrada nenhuma diferença de risco de morte entre as pessoas que faziam ou não faziam check-ups, mesmo quando considerados períodos de seguimento longos. Também não foi encontrada nenhuma diferença entre os dois grupos na mortalidade por doenças cardiovasculares ou cancro. Nem foi notada nenhuma diferença no número de dias de internamento hospitalar, de consultas médicas ou de faltas ao trabalho por doença (mas estes efeitos foram mais mal estudados).

Um dos ensaios clínicos revelou um aumento de 20% no número de diagnósticos por doente, durante um período de seis anos, quando comparado com o grupo que não fazia check-ups. Os autores concluem que é improvável que os check-ups sejam benéficos e sugerem que a ausência do seu efeito se explique porque os médicos intervêm quando desconfiam que um doente está em risco de uma determinada doença, mesmo que o vejam por outros motivos. Uma crítica que se pode fazer a esta revisão é que, apesar de publicada em 2012, os dados são antigos, tendo sido considerados ensaios clínicos que decorreram até 1999.

Que exames e para quem?

Os check-ups em massa tiveram a sua origem histórica no Reino Unido, ainda no século XIX. O objectivo era, claro, prevenir doenças. Mas as motivações foram para além disso, tendo as companhias de seguros assumido um papel relevante no início do século XX na sua promoção, pois consideravam que tinha valor económico saber a história médica dos seus candidatos a segurados. Ao longo do século XX os check-ups generalizaram-se, embora os exames tenham variado ao longo do tempo e de médico para médico.

Em 1968 a Organização Mundial da Saúde publicou um documento que definia dez princípios a aplicar no rastreio preventivo de doenças. Entre eles, a doença deveria ser um problema de saúde importante, ter tratamento e haver uma fase assintomática. A partir de 1989 um organismo norte-americano (a US Preventive Services Task Force) começou a publicar recomendações acerca de procedimentos de medicina preventiva para cerca de 60 doenças, baseadas nos estudos existentes, que têm sido periodicamente actualizadas. O mesmo têm feito autoridades de outros países. Queremos hoje saber que exames podem fazer sentido e para quem. Por exemplo, adultos sem sintomas podem beneficiar da medição regular da pressão arterial e do índice de massa corporal. Exames específicos, que têm em conta factores de risco familiares, profissionais, ambientais e a idade, são preferíveis a uma extensa bateria de testes iguais para todos. O que parece fazer sentido é articular com o médico como e quando devemos vigiar a nossa saúde, sem que a consulta implique necessariamente a realização de muitos exames.

Bioquímico

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