Apesar da confusão, as provas científicas da eficácia das estatinas são sólidas

O que sabe a ciência sobre as estatinas, os fármacos mais usados para baixar os níveis de colesterol? E sobre a relação entre o colesterol e as doenças cardiovasculares? Fazemos aqui um ponto da situação.

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O consumo excessivo de gorduras saturadas influencia os níveis de colesterol SÉRGIO AZENHA

As estatinas são medicamentos usados para reduzir os níveis de colesterol elevados no sangue, especificamente o “mau colesterol” (LDL, na sigla em inglês), considerado um factor de risco de doenças cardiovasculares. Nos Estados Unidos, metade dos homens entre os 65 e os 74 anos tomam estes medicamentos. Em Portugal, as estatinas representam 90% dos medicamentos prescritos para baixar o colesterol e o seu consumo tem vindo sempre a aumentar. O preço por tratamento baixou desde 2008, em parte por causa da entrada no mercado de medicamentos genéricos mais baratos. Há hoje, no entanto, uma controvérsia pública acerca dos benefícios do seu uso, com alguns a advogar a existência de demasiados efeitos secundários ou a sua inutilidade. Há mesmo quem defenda uma ausência de relação entre os níveis elevados de colesterol  no sangue e o risco de doença cardiovascular. Apesar da confusão no debate público, do ponto de vista científico as coisas são mais claras.

A controvérsia

A origem da dúvida remonta a 2011 quando foi publicada pela Cochrane, uma colaboração internacional de investigadores que revêem a literatura médica, uma revisão sistemática da literatura médica acerca do assunto. Esta revisão avaliou o uso de estatinas para baixar os níveis de colesterol no sangue, como forma de prevenção em pessoas que não tinham um historial de doenças cardiovasculares. Os autores consideraram 14 ensaios clínicos que abrangeram 34.272 participantes, divididos aleatoriamente em grupos que tomavam ou não estatinas.

Os dados combinados mostraram uma redução do risco de mortalidade (por qualquer causa) de 16% entre as pessoas que tomavam estatinas. Os risco de ataques cardíacos e de acidentes vasculares cerebrais também baixavam, assim como o colesterol no sangue (total e LDL). Não foram encontradas provas de qualquer dano significativo causado pelas estatinas ou efeitos na qualidade de vida dos pacientes.

Nas conclusões, os autores reconheceram que as estatinas reduzem a mortalidade e os problemas cardiovasculares, mas também lançaram incerteza acerca da sua utilidade na prevenção em pessoas sem um historial de doenças cardiovasculares: “Há apenas provas limitadas que mostram que a prevenção primária com estatinas pode ter um bom custo-benefício e melhorar a qualidade de vida dos pacientes. Deve-se ter precaução na prescrição de estatinas para prevenção primária entre pessoas com baixo risco cardiovascular.”

Em grupos de pessoas com baixo risco de doença (como aqueles que não têm um historial de doenças cardiovasculares), o balanço entre os benefícios de um tratamento preventivo e os riscos e custo desse tratamento pode ser desfavorável. Os efeitos secundários (mesmo que pequenos) podem ser maiores do que os riscos da doença prevenida. E nem sempre é fácil traçar uma linha entre as pessoas que têm ou não factores de risco relevantes. Mesmo quem não tenha tido doenças cardiovasculares pode ter riscos significativos, como hipertensão arterial, colesterol elevado ou tabagismo.

No caso das estatinas, essa linha tem implicações económicas relevantes. Os autores da revisão de 2011 notaram que vários ensaios clínicos abrangeram pacientes de alto risco (e não de baixo risco, como seria adequado para avaliar a prevenção primária) e que alguns ensaios não continham dados sobre os níveis de colesterol LDL dos doentes. Entenderam que havia ensaios enviesados, de modo a exagerar o benefício das estatinas na prevenção primária. No entanto, não puseram em causa a existência de um benefício. Por cada 1000 pessoas que tomam estatinas durante um ano, é prevenida uma morte. Os autores consideraram isso um pequeno benefício. Na altura, vários outros investigadores criticaram estas conclusões. Colin Baigent, epidemiologista da Universidade de Oxford (no Reino Unido), afirmou: “Oponho-me às conclusões que eles tiraram da sua revisão. Dizem que não há boas provas do benefício, mas os seus próprios dados mostram uma redução significativa no número de mortes e ocorrências cardíacas.”

Novos dados

Em 2013, a Cochrane fez uma actualização da revisão da literatura científica, que manteve boa parte dos autores da de 2011. Foram incluídos mais quatro ensaios clínicos e novos dados de três ensaios constantes da revisão anterior. A actualização confirmou os resultados de 2011 e eliminou das conclusões a dúvida sobre o custo-eficácia da estatinas. Segundo os autores, “os dados disponíveis mostram que é provável que a prevenção primária com estatinas tenha um bom custo-benefício e pode melhorar a qualidade de vida dos pacientes”. Os autores esclarecem que “por cada 1000 pessoas tratadas com estatinas durante cinco anos, 18 irão evitar uma ocorrência cardiovascular significativa, o que é bom quando comparado com outros tratamentos usados para prevenir doenças cardiovasculares”.

Ana Filipa Macedo, farmacêutica doutorada em farmacoepidemiologia foi uma das autoras desta revisão de 2013, encontrando-se na altura a trabalhar no Instituto de Higiene e Medicina Tropical de Londres. “As provas científicas acumuladas ao longo de mais de 30 anos são robustas e demonstram que as estatinas são efectivas e seguras na prevenção de doenças cardiovasculares, a principal causa de mortalidade e morbilidade a nível mundial”, diz a investigadora portuguesa. “É importante que esta informação chegue aos portugueses de forma clara e responsável, e se evite a desinformação, porque isto tem um impacto significativo em termos de saúde pública.”

A esse propósito, Ana Filipa Macedo lembra um estudo recente conduzido no Reino Unido: “Após um período de intenso debate nos meios de comunicação sobre os benefícios e riscos da utilização de estatinas, com informação controversa publicada, mais de 200.000 doentes no Reino Unido interromperam o seu tratamento com estatinas, estimando-se que isso poderá resultar em 2000 a 6000 ocorrências cardiovasculares adicionais nos próximos dez anos, que poderiam ter sido evitadas.” Um outro estudo realizado na Dinamarca, e publicado em 2015 na revista European Heart Journal, avaliou o efeito da cobertura mediática na interrupção do tratamento com estatinas em 674.900 pessoas, e chegou a conclusões semelhantes.

Temos estado a debruçar-nos sobre o uso de estatinas em pessoas sem uma história de doenças cardiovasculares, ou seja, na prevenção primária. No caso de pessoas que já tiveram problemas cardiovasculares, uma vez que o risco é maior, o benefício é ainda mais evidente, como mostra uma outra revisão da literatura científica publicada em 2013 na revista European Journal of Preventive Cardiology, que levou em conta 92 ensaios clínicos, que abrangeram 199.721 pacientes.

O papel do colesterol

Outra questão que se coloca é se a redução de risco de doenças cardiovasculares verificada com as estatinas se deve ao facto de estas baixarem os níveis de colesterol LDL ou a outros efeitos biológicos. Um ensaio clínico publicado em 2008 na revista The New England Journal of Medicine (NEJM), com 17.802 participantes, revelou que as estatinas causavam uma redução do risco de doenças cardiovasculares em pessoas que até já tinham níveis de colesterol LDL baixos. Os benefícios, segundo os autores, não estavam relacionados com o colesterol, mas com a redução dos níveis de proteína C-reactiva (uma proteína envolvida em processos inflamatórios). Estes resultados sugerem que as estatinas podem ter um efeito benéfico, independentemente dos níveis de colesterol.  

Apesar disso, uma revisão sistemática da literatura científica publicada em 2010 na revista The Lancet, que considerou 26 ensaios clínicos que abrangiam 170.000 pacientes, indicou, mais uma vez, que uma redução dos níveis de colesterol LDL conduz à redução do risco de doença cardiovascular.

Um outro ensaio clínico de 2015 na NEJM abrangeu 18.144 pacientes que nos dez dias anteriores tinham sido internados por síndrome coronária aguda. Foi avaliado o efeito de tomar um outro medicamento que reduzia o colesterol, em complemento ao tratamento com as estatinas. Quando mais baixo fosse o nível de colesterol LDL, concluíram os autores, menor também o risco de uma nova ocorrência cardíaca (embora a diferença fosse pequena).

Outros medicamentos em ensaios clínicos (mas que ainda não chegaram ao mercado, como os inibidores de PCSK9, que é uma proteína do fígado) que baixam dramaticamente o colesterol LDL conseguem também uma redução assinalável do risco de doenças cardíacas.

A ideia de que os níveis de colesterol LDL são um importante risco de doenças cardiovasculares tem hoje na literatura científica bastante apoio. E as estatinas têm provado claramente a sua eficácia na redução dos níveis de colesterol no sangue elevados.

 Bioquímico e divulgador de ciência

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