Um antropólogo nas malhas de Kafka

Este é um caso singular, é verdade. Mas prova até onde vai o arbítrio em nome do Estado.

Podem dizer: “Isto é relevante? É apenas um caso, de uma pessoa.” Pois é por isso mesmo que é relevante. Porque sendo uma só pessoa, e não um grupo, tem mais dificuldade em fazer-se ouvir. E o caso em si é bastante estranho, como verão. Passa-se com um cidadão português, Mário Gomes, doutorado em antropologia, que, desempregado de longa duração e já sem qualquer possibilidade de ser aceite no mercado de trabalho, apesar de muitas tentativas, pediu acesso à reforma antecipada.

Até aqui, tudo bem. Nada que outros não tenham feito. O pedido foi entregue em Janeiro de 2016, ciente de que cumpria o requerido pela lei. Ou seja, ser desempregado de longa duração, ter 52 anos quando deixou de ver o seu contrato renovado (tinha 54 e era, à data, professor) e ter “pelo menos 22 anos civis com registo de remunerações”, conforme explica a última carta que recebeu, datada de 21 de Julho. Ora, pelas contas dele, tem quase 35 anos de descontos. Portanto, cumpria o exigido.

Cumpria? As esparsas cartas que ia recebendo, e que ele lia com espanto, diziam-lhe que não. E, até hoje, o seu caso continua por resolver nas intrincadas malhas kafkianas do Estado. Convém, antes do mais, explicar o percurso de Mário no mercado de trabalho. De trabalhos temporários aos 17 anos, passou a escriturário (fixo) e depois a empregado de seguros. Em 1990, mudando de rumo, era já docente no Ensino Secundário, onde ficou oito anos até ingressar na Escola Superior de Educação do Instituto Politécnico da Guarda, onde leccionou 11 anos consecutivos, até 2009. É nessa altura que não lhe renovam o contrato e se vê empurrado para o desemprego. Começa, então, a receber subsídio de desemprego, até que consegue uma bolsa da Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT), concluindo com ela o doutoramento na FCSH/UNL com nota máxima, Muito Bom. Nesse período, como manda a lei, o subsídio de desemprego foi interrompido. Defendida a tese, em 2014, esta foi depois publicada em 2016, mas como tal publicação, apesar de prestigiante, não lhe rendeu “um cêntimo” (as palavras são dele), teve de voltar a depender do subsídio de desemprego.

Até que este chegou ao fim e não lhe restou outra saída, dado fecharem-se-lhe as portas do mercado de trabalho, senão recorrer à reforma antecipada; na altura, porque entretanto chegou aos 62 anos. E chegou com o assunto por resolver. Porquê? A primeira argumentação era de que o subsídio de desemprego lhe tinha sido pago pelo Ministério da Ciência (o que é verdade, embora essa decisão tenha competido ao próprio Estado). Responderam-lhe, do ISS: “Não consta com prestações por desemprego pagas pela Segurança Social.” No entanto, ele tem cartas onde o Ministério informa o Instituto do Emprego e Formação Profissional (IEFP) da atribuição do subsídio, o que faz com que fosse intimado, pelo próprio IEFP (tem cartas a prová-lo), a comparecer em centros de emprego.

Esta argumentação, que ele viria mais tarde a contestar por escrito, por via de um advogado, acabou por cair. Na carta mais recente que recebeu, da Secretaria-Geral da Educação e Ciência (SGEC), a tal com data de 21 de Julho deste ano, diz-se inclusive: “afigura-se irrelevante para a questão em apreço que a atribuição e o pagamento do subsídio de desemprego tenham sido assumidos pelo MCTES [o Ministério da Ciência].” Então o que é revelante? Os anos de descontos. Segundo o antropólogo, que o prova com documentos, terá quase 35 anos de descontos feitos; segundo a carta, porém, só tem “19 anos civis com registo de remunerações no regime geral”. Mas, reconhecem, tem a acrescer a isso “descontos para a CGA [Caixa Geral de Aposentações] no total de 14 anos e 6 meses.” Que, para eles, não contam. Porquê? Porque, “no entendimento do NAJ [Núcleo de Apoio Jurídico] do ISS”, onde a lei diz “registo de remunerações” quer dizer (pasmem!) “remunerações que tenham sido base de incidência contributiva para a Segurança Social.” É o NAJ que entende, a lei não o explicita! Ora Mário Gomes, que em todos estes anos descontou para o Estado (nunca lhe deram sequer oportunidade de escolher para onde devia descontar, o Estado-patrão é que tratou de tudo), protesta e com razão. E o que lhe dizem agora da SGEC, a ele que já enviou cartas para todo o lado a detalhar, com documentos, esta história absurda? “Solicite junto da área governativa […] um pedido de audiência, ou recorra aos meios legalmente previstos para apreciação de pretensão.”

O que resta a um cidadão, que se diz e prova cumpridor, perante tamanho descaramento? Como se disse no início, este é um caso singular. Mas prova até onde vai o arbítrio em nome do Estado.

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