Serviço público amigo do peito

Parecendo que não, a maioria dos jogos de futebol transmitidos na televisão é, bem espremida, hora e meia com grandes planos, às vezes em super "slow motion", só de homens

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David Straight/Unsplash

Por casualidade cromossómica, calhou ser mulher. Por casualidade de identificação sexual, calhou ser heterossexual. E por casualidade de influências, calhou gostar de futebol. E esta é, aparentemente, uma combinação que, em 2017, ainda causa muita curiosidade a operadores de câmara e realizadores de transmissões desportivas de um canal público.

Na Supertaça Cândido de Oliveira deste ano, defrontaram-se duas equipas, com onze jogadores para cada lado, ajuizadas por uma catrefada de árbitros, entre analógicos e digitais, durante — mais compensação, menos compensação — 90 minutos. Mas para a história fica o grande plano de uma adepta ao minuto 90. Não é de uma cara de felicidade, não é de um cachecol levantado num cântico, não é de uma "ola" feita com convicção. É só perfil do peitoral. O grande plano, entretanto, vai poeticamente abrindo e deixando caber igualmente na imagem o resto da dona do perfil.

Foram uns segundos de serviço público questionável. Neles cabem a acusação de conduta pouco profissional, de machismo ou, até, de pura distracção da realização. Eu, como mulher heterossexual que gosta de futebol e crente no lado bom da humanidade, incluindo no do serviço público, resolvi entender este enquadramento como arte metafórico-futebolística. Assumamos, então, que o grande plano se destina ao emblema da camisola que a absolutamente aleatória adepta enverga e que, por acaso – e só isso! –, assenta em cheio nas absolutamente aleatórias redondezas peitorais. Não será uma metáfora visual para a expressão “clube do peito”? E não trará uma nova abrangência semiótica ao contexto futebolístico de quem está “fora de jogo”?

A área científica do metafutebolismo nas transmissões televisivas é, lamentavelmente, muito pouco explorada, o que enaltece em maiores grandezas a intenção pedagógica do nosso primeiro canal. Criticar esta opção artística de transmissão não deixa de ser uma mostra de resistência à instrução.

Estou certa de haver muitas perspectivas a partir de onde lançar opiniões relativamente ao fascínio das câmaras em descobrir partes anatómicas de adeptas na multidão dos estádios. Eu própria confesso que, na altura, esperei ver um grande plano de um peitoral masculino adversário para repor o equilíbrio. Não apareceu e depois percebi a razão. Como mulher heterossexual apreciadora de futebol, concluí que ainda estamos a ganhar a todas as objectivas pouco profissionais ou machistas ou distraídas ou artísticas. Parecendo que não, a maioria dos jogos de futebol transmitidos na televisão é, bem espremida, hora e meia com grandes planos, às vezes em super slow motion, só de homens.

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