Os trunfos de um governo mansinho

Em Pedrógão e em Tancos, o Governo fez o que melhor sabe fazer: virou a página.

Ao lado das palavras cruzadas ou do sudoku, adivinhar o putativo princípio do fim do estado de graça do Governo e da coligação informal que o sustenta tornou-se uma das mais animadas distracções do Verão. Depois da tragédia de Pedrógão e da vergonha de Tancos, dissertar sobre a aura de sucesso de António Costa e dos seus ministros era possível. Lógico, até. Os mais exaltados puderam ver nesses momentos um princípio do fim. As respostas ferozes dos porta-vozes do Governo exalavam um sentimento de medo que corroborava a ideia sobre a iminência de uma crise. O Governo, sabe-se hoje, fez o que melhor sabe fazer: virou a página. Mas virou a página mais por imposição do que por deliberação. Afinal, que Governo nos espera no final do Verão?

Por muito que os fervorosos adjuntos de António Costa, como Eduardo Cabrita, venham dizer que “os portugueses penalizaram o PSD pela reacção a Pedrógão”, ainda que os inquéritos de opinião coloquem o PS a caminho da maioria, é inegável que, para o Governo, há um antes e um depois de Junho. Foi aí, entre o desordenamento da floresta, a incompreensível tolerância com as falhas do SIRESP e a negligência dos comandos militares que se percebeu que, afinal, o Portugal desgovernado, laxista e incompetente persistia debaixo do tapete das glórias propagandeadas pelo Governo. Num ápice, tomou-se consciência que as boas notícias da frente económica, do emprego ou das contas públicas eram a ponta de um icebergue que submergia os problemas estruturais. A dúvida pairou: com tantos buracos no estado e no país, o que vale um Governo que, para lá da gestão rigorosa das contas públicas, se baseia na crença mitológica que basta “virar a página” para entrarmos num novo capítulo?

Rápidos e eficazes, os mestres da máquina de marketing que hoje agrega toda a esquerda trataram de dizer que o que estava em causa eram apenas problemas que vinham de trás. Mas, percebemo-lo todos, eram também problemas que não estavam a merecer a devida atenção do Governo. A forma como o primeiro-ministro e os seus ministros trataram de salvar as suas biografias nos desastres de Junho, o modo como a comunicação social foi vilipendiada por fazer perguntas (algumas estúpidas, é certo), a anedota das perigosas armas de guerra roubadas que num ápice se transformaram em sucata, tudo serviu para mostrar que, num momento que exigia coragem, medidas drásticas e energia, o Governo limitou-se a gerir a conjuntura e a flutuar sobre os problemas. No caso das florestas, não houve uma mobilização nacional para combater os fogos como a circunstância reclamava, apenas a gestão corrente do “dispositivo” e uma cedência às propostas do Bloco numa reforma florestal que ameaça uma das fileiras mais relevantes da economia nacional (o eucalipto-pasta-papel).

Por que agiu o Governo como agiu? Porque pode. Dizer que houve uma mudança de percepção sobre o Governo não basta para o colocar em crise e ainda menos para o demolir. Navegar à bolina nunca penalizou ninguém, principalmente quando os ventos da Europa sopram a favor. Reagir em vez de actuar nem sempre é pecado político, ainda mais quando este Governo ostenta os galões do equilíbrio precário ao enquadrar num compromisso centrista o radicalismo da extrema-esquerda. De resto, no que conta mesmo, as coisas correm bem. O ministro Mário Centeno continua a apertar o cinto e se a evolução das receitas fiscais do primeiro semestre estão abaixo do esperado (em boa parte, como notou Daniel Bessa no Expresso, devido a devoluções do IRS cobrando indevidamente em 2016), a economia continua a florescer e o endividamento das famílias a aumentar. Para os portugueses, o tempo é de férias e, depois dos anos sufocantes da troika, a hora é de relaxar. Havendo emprego, dinheiro no bolso e crédito na banca, não há razão para mudar o Governo. A bonomia de Costa e as promessas e os direitos proclamados por Catarina Martins e Jerónimo de Sousa colam bem nesse estado de espírito veraneante tão tipicamente português.

E não há razão para mudar de Governo também porque, depois de Junho, os cidadãos olham à sua volta e têm mais dificuldades em procurar uma alternativa. O CDS fez prova de vida, mas ficou-se pelo suficiente menos. O PSD afundou-se numa gestão política ansiosa e despropositada. Uma falha sinistra de Passos Coelho (quando anunciou suicídios em Pedrógão) e o haraquíri político do seu novel líder parlamentar (quando deu ao Governo um ultimato de 24 horas para a revelação da lista das vítimas) acentuaram a imagem do partido como uma agremiação de snipers emboscados, à espera da distracção dos seus alvos. Com a actual liderança, só se tornará credível se houver uma crise económica. É por isso que, apesar do dolce fare niente do Governo em matérias estruturais (até a sua mais emblemática reforma, a descentralização, foi posta em banho-maria), apesar de andar de mão dada com partidos que defendem a tirania de Nicolás Maduro ou que se entretêm a decretar com força de lei a felicidade a abolição das injustiças, António Costa ganhou por falta de comparência da oposição.

Pode ser que o recrudescimento dos conflitos laborais que se anunciam aumentem a pressão sobre o Governo, pode ser que as negociações sobre o Orçamento de 2018 façam estalar o verniz no seio da coligação informal, talvez o Bloco e o PCP se cansem de ser muletas de um executivo que persiste na obsessão do défice aplicando ao Estado fortes doses de austeridade. Ainda assim, António Costa e os seus pares têm fôlego suficiente para sublimar os danos de Pedrógão e de Tancos e manter a sua governação em lume-brando até ao final do mandato. Afinal, eles são os mais fiéis intérpretes de um desejo profundo dos portugueses, que querem tudo menos sobressaltos em nome do futuro.

Com a economia a crescer quase 3%, haverá ainda mais uns trocos para distribuir pela função pública, paciência para aguentar as reclamações dos serviços públicos esmagados pelas restrições financeiras e o desejo de reclamar os louros da responsabilidade fiscal. Saber durar, o princípio com que o historiador Fernando Rosas explicou a longevidade do Estado Novo, tem por estes dias o seu certificado de eficiência num regime democrático. Com Marcelo a dizer ao DN que não é “defensor da excelência do chamado Bloco Central”, o PS pode crescer e consolidar a sua hegemonia à esquerda e o PSD ficará condenado à dura tarefa de reerguer uma maioria de direita que ninguém consegue vislumbrar a médio prazo. Pedrógão e Tancos foram maus para António Costa? Foram, mas nada que um governo mansinho, uma esquerda à esquerda apaziguada, a economia a crescer e uma boa vitória nas autárquicas não consigam resolver.

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