Dos proprietários, do Estado, do fogo e da natureza

Talvez olhando para os fogos como um problema económico falássemos menos da responsabilidade dos proprietários.

Para o Estado, e para grande parte da sociedade, uma coisa é certa: grande parte da responsabilidade pelo fogo é dos proprietários e devem ser os proprietários a resolver a questão.

Por isso o Estado impõe uma série de obrigações aos proprietários, chegando a extremos que são mais bem descritos por Nuno Gaspar que por mim: "A lei actual condena os infelizes com propriedades junto a casas [...] a trabalhos forçados, são obrigados a agir sobre a sua propriedade mas não podem dela retirar rendimentos. Só o facto de serem os mais fracos e pobres da sociedade, velhos abandonados, por essas aldeias fora, sem capacidade de vir para a rua e para o Facebook fazer chinfrim, explica a aceitação de tamanha barbaridade."

O Estado parte do princípio de que é legítimo impor-me um ónus para garantir a segurança da casa do meu vizinho, quando, na maior parte das vezes, a casa até foi construída depois de eu ter o meu terreno com uso florestal.

Os argumentos que tenho ouvido a favor desta barbaridade assentam na analogia com as responsabilidades por circular com um automóvel, ou as responsabilidades de garantir a segurança da via pública se a minha casa estiver em mau estado.

Só que ninguém me obriga a ter um carro impecavelmente tratado se estiver parado e posso deixar arruinar a minha casa desde que não ponha em causa a segurança dos espaços públicos.

Quando os custos de gestão são maiores que os proveitos, o proprietário cessa a gestão, tal como faz o dono da fábrica que dá prejuízo, sem que ninguém se lembre de exigir ao dono da fábrica que continue a manter a fábrica impecável, mesmo que não tenha receitas.

O crescimento da vegetação na minha propriedade é um processo natural e o fogo é igualmente um elemento natural que eu não controlo. Por isso a analogia certa é, por exemplo, com uma enxurrada que passa pelo meu terreno e destrói o armazém do meu vizinho: eu não sou responsável pelos efeitos da enxurrada que passou no meu terreno e afectou terceiros.

A gestão florestal, em Portugal, raramente andou a par com a necessidade de entregar resultados económicos ao proprietário, assentando essencialmente no Estado — com a recente excepção dos técnicos florestais de meia dúzia de grandes produtores —, o que criou um enorme desfasamento entre a actividade regulatória do Estado em matéria florestal e as necessidades reais de gestão das propriedades.

Por exemplo, os 50 metros de protecção das casas poderiam ser reduzidos para 20 metros mas não é feito porque verdadeiramente não se avaliam as consequências económicas, para os proprietários, da aplicação de normas técnicas florestais definidas noutros contextos.

Do mesmo modo, as regras de protecção dos aglomerados impõem faixas de gestão de combustíveis em que as árvores têm de estar afastadas entre si, permitindo a penetração de luz que potencia o enorme crescimento dos matos, implicando custos de gestão activa proibitivos. No entanto, não seria absurda uma plantação de elevada densidade de folhosas para criar ensombramento que poderia controlar os matos passivamente, sem gestão intensa, ou seja, com custos razoáveis (a prazo).

Mais grave é a ideia, pouco demonstrada, de que ganhando escala a floresta portuguesa ganha competitividade e, portanto, a questão da propriedade é uma questão central para uma melhor gestão do território.

Passando por cima do facto de a maioria do VAB da produção florestal ser no minifúndio, o Estado dispensa-se de demonstrar, nos milhares de hectares que gere, próprios, ou nos baldios em co-gestão, que é possível pagar a gestão e tirar rendimento destes terrenos de grande dimensão.

Também associações que insistem que há alternativas económicas para a exploração de terrenos, como a Quercus ou a LPN, se dispensam de fazer essa demonstração nos seus terrenos. A Montis (a que estou mais ligado) também não consegue demonstrar a viabilidade económica do seu modelo de gestão de propriedades, justificando-o com outros objectivos que dispensam o retorno económico (os nossos sócios gostam de carvalhais e estão dispostos a pagar para os ter).

É verdade que, como acontece nas celuloses ou na Floresta Atlântica e alguns grandes proprietários, há modelos de gestão florestal em que a dimensão da propriedade é uma condição necessária de viabilidade económica. Mas esses modelos implicam 1) que as condições do terreno sejam compatíveis com acções de gestão pesadas e mecanizadas; 2) que o produto dessa gestão tenha um preço de venda que pague os elevados custos de gestão. Só que em grande parte do país essas duas condições não existem em simultâneo, pelo que esse modelo nunca será um modelo de aplicação universal.

Talvez olhando para os fogos como um problema económico falássemos menos da responsabilidade (moral? social?) dos proprietários e passássemos a discutir eficiência, competitividade, falhas de mercado, retorno para os proprietários e essas coisas que fazem os proprietários agir e gerir e que, infelizmente, estão muito ausentes quer do debate público sobre florestas e fogos, quer dos diplomas sobre floresta que foram agora aprovados.

Não seria a altura de tratar a floresta como uma questão económica de pessoas comuns e deixar de a tratar como uma questão do Estado?

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