Arles, manual de fotografia para rebentar fronteiras

Nos Encontros deste ano há um mundo de mundos que se podem galgar a pé, sem postos de controlo ou linhas divisórias. Conhecemos um país, o Irão, que está a fazer imagens novas para se libertar das imagens velhas. E entramos num mundo, o latino-americano, com imagens velhas que parecem imagens novas.

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Azadeh Akhalaghi reconstitui em imagem as mortes trágicas de pessoas que se bateram por melhores condições de vida no Irão. Em cima, a simulação do acidente que causou a morte da poetisa Forough Farrokhzad, a 13 de Fevereiro de 1967 Azadeh Akhlaghi, s/t, da série Testemunha Ocular, 2012 (cortesia da artista)

Se se quiser testar a fotografia como a arte da evasão e do teletransporte, os Encontros de Arles deste ano são um bom ponto de partida. Isto, claro, com todas as vantagens de não termos de obrigar o corpo a percorrer enormes distâncias para conseguirmos sintonizar a mente noutro lugar, ou melhor, em muitos lugares.

Ao encontrarmos reunidas numa superfície de cerca de um quilómetro quadrado mais de 40 exposições com origens tão imensamente dispersas (isto só na secção oficial), até podemos sonhar com a inexistência de uma disciplina como a geografia política, no seu esforço por nos lembrar que as fronteiras existem. O que quer dizer que durante este Verão em Arles é possível fazer longas viagens sem atravessar qualquer posto de controlo, nenhuma linha divisória, sem marcos à vista.

O que já é impossível não avistar é a torre de 56 metros que a Fundação Luma, de Maja Hoffmann, encomendou ao arquitecto Frank Gehry, que é apenas uma parte do futuro complexo Luma Arles, que deve ser inaugurado no próximo ano com uma oferta cultural “multidisciplinar, combinando arte contemporânea, urbanismo e arquitectura”, em que a fotografia jogará um papel central. 

Estando ainda por verificar os méritos do plano de Hoffmann para Arles (que, nos últimos anos, tem alimentado acaloradas discussões), certo é que aquela torre, que começa agora a ser revestida com o aço reluzente típico nas obras de Gehry, significa o contrário daquilo que é hoje no festival disperso, fluido, envolvente e inesperado, tal como foram este ano dois novos espaços expositivos resgatados ao abandono e à insignificância no contexto urbano da cidade (a Croisière e a Maison des Peintres).

Por mais optimista que se possa estar, a magnitude daquilo que está a ser construído não pode deixar de antecipar uma profunda mudança na maneira de se fazer o festival e de o distribuir por uma cidade que tem a exacta medida para nos fazer rodar de exposição em exposição sem pensarmos muito nas distâncias. Por outro lado, perante o colosso arlesiano de Gehry, não se consegue escapar a um arrepio na espinha nem à imagem de uma torre ciclópica que, imponente sobre a paisagem, tudo vê, tudo quer, tudo domina, tudo compra. Um obelisco “reticular”, como a forma do próprio edifício exibe, que parece dançar sobre si, num movimento autofágico, autocentrado e autista. “Encontros de Fotografia, instituições culturais, hotéis, urbanismo, perspectivas de desenvolvimento: os suíços estão em todo lado [em Arles] e são muitos na mudança espectacular daquilo que, até há bem pouco tempo, não passava de uma localidade periférica, com encanto natural e pitoresco”, escreveu o jornalista Alexis Favre num artigo recente para o diário suíço Le Temps, onde mapeia os interesses do clã Hoffmann na região da Camarga, onde o pai de Maja, Lukas, neto do fundador da gigante farmacêutica Hoffman-La Roche, uma das líderes mundiais do sector, comprou propriedades e passou boa parte da vida a estudar aves. 

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O complexo Luma Arles deve ser inaugurado em 2018 DR

Perante a influência que Maja Hoffmann demonstrou não só nesta edição dos Encontros — exposição de Annie Leibovitz e o seu protagonismo na noite de abertura, depois do anúncio da compra no início deste ano de todo o arquivo da fotógrafa americana pela fundação da milionária suíça —, como também desde 2010, ano em que as propostas da Luma passaram a “incorporar” a programação oficial, são legítimos os temores dos que olham para este investimento suíço em Arles como a imposição de um modelo puramente empresarial de um festival que já demonstrou ser mais inclusivo do que exclusivo.   

O mosaico de imagens que desde há 48 anos se forma nos Encontros tem necessariamente o seu lado ritualístico e previsível (estabelecido, lobbyista, interesseiro e táctico). Este ano não é excepção com, por exemplo, algumas escolhas de autores franceses (poucas) a beneficiarem do factor “jogar em casa”. No entanto, nos anos mais recentes, também é notória a capacidade do festival de resistir ao acomodamento e à sombra do sucesso, procurando “novos espaços”, não apenas no sentido físico (talvez o mais fácil), mas sobretudo no sentido figurado, tentando compreender os limites por onde se move a actual criação fotográfica e identificando os protagonistas do seu ecossistema.

Este exercício de constante perscruta tem resultado num esborratamento de fronteiras (outra vez as linhas divisórias vencidas) entre os mais variados domínios, que vão necessariamente muito para lá da geografia, da história e da política.
Aliás, as propostas mais interessantes quer desta quer de outras edições recentes têm surgido quando essa sonda curatorial é lançada rumo a domínios menos tradicionais, clássicos ou canónicos, como o vernacular, o ultra-específico ou especializado, o supostamente “amador” ou o até então secreto.

Secreto, o Irão?

Por mais atentos que estivéssemos a um ou outro nome da fotografia iraniana, é difícil sair da Igreja de Santa Ana, no coração de Arles, onde se mostra Iran, Année 38, sem a sensação de uma enorme surpresa ou, pelo menos, a aceitação do quanto estamos longe (a partir de um ponto de vista europeu) de conhecer um panorama criativo que se revela em plena efervescência.

Impressionam em primeiro lugar os 66 nomes escolhidos para dar conta não só de um pulsar actual do país mas também daquilo que foi a produção nos campos conceptual e documental desde a revolução islâmica, em 1979, passados justamente 38 anos, o momento a partir do qual as comissárias Anahita Ghabian Etehadieh (1962) e Newsha Tavakolian (Teerão, 1981) decidiram pôr “os contadores a zero”. É um recomeçar que, mais do que acertar contas com o regime milenar persa (que a chegada dos ayatollahs ao poder interrompeu), pretende “celebrar a cultura iraniana da poesia visual”. No catálogo da exposição, Tavakolian explica que seria “redutor” e “lamentável” reduzir a produção fotográfica do Irão deste período a “cinco ou seis” autores. Ou, por exemplo, fechá-la no trabalho “de um grupo de mulheres fotógrafas”. Quiseram ser “exaustivas” para dar, tanto quanto possível, o mais amplo panorama da fotografia do seu país.

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Uma combatente esconde o rosto da câmara. Fazia parte das forças que ocuparam a universidade de Teerão, em 1979, na véspera da revolução iraniana Kaveh Kazemi, s/t/Cortesia do artista)

Certo é que, ao longo destas quase quatro décadas (de “uma nação jovem”), a imagem que foi sendo forjada por fotógrafos, realizadores e artistas se viu “entalada” entre os primeiros passos de uma revolução que pretendia a afirmação de uma identidade estatal islâmica, uma longa guerra com o Iraque, entre 1980 e 1988, e a ameaça constante de outros conflitos com países vizinhos, como o Afeganistão, Israel e a Turquia (a instabilidade sempre presente).

Tentar escapar visualmente deste percurso seria o mesmo que apagar a história, não só de um passado mais longínquo mas também do presente. Ghabian (galerista em Teerão desde 2001) e Tavakolian (fotógrafa desde 1997) sabem-no bem e por isso convocaram muitos autores cujo trabalho espelha muito mais do que a circunstância de ter sido criado a partir de “acontecimentos dramáticos” ou misturando “o quotidiano de quem os documenta”. “Estas imagens surgiram do espírito daquele ou daquela que as captou”, escrevem na apresentação da exposição.

Muito desse imaginário da revolução e da guerra ainda está na cabeça dos iranianos, mas há um desejo de esquecer essas cicatrizes. Newsha Tavakolian: “O mundo mudou, o Irão e o seu povo também.” Ou seja, é preciso ver para além da história “para transformar o indizível em imagens que exprimam a nostalgia, o arrependimento, as rupturas, as dúvidas e a esperança dando a ver a face de um novo Irão”. Um país que, para as comissárias, deve ser visto, por exemplo, para lá do estereótipo que reduz a mulher à clausura do hijab, ou mesmo do cliché que tem o género feminino como um tema iraniano, sobretudo presente no cinema.

Essa intenção de ir além do que se espera, do que pode ser a norma ou do que corresponde à expectativa dos outros é uma das marcas mais fortes de Iran, Année 38, exemplificada também na recusa de mostrar qualquer imagem das gigantescas manifestações de 2009, depois da “depressão” provocada pela reeleição de Mahmoud Ahmadinejad. Porquê? Para tentar ir mais fundo e de compreender o que pode ter estado na origem e repercussão desse estado de revolta, primeiro, e profundo torpor, depois. E um dos trabalhos que melhor espelham esse mergulho num estado de coma colectivo, sobretudo em Teerão, é precisamente o de Newsha Tavakolian, que durante um ano convidou vizinhos a entrarem no seu quarto e a expressarem o que sentiam sobre o estado do país. Às 20h em ponto captava uma fotografia do convidado. “Para mim, esse quarto foi de alguma maneira uma metáfora do Irão [desse tempo]”, disse ao Le Point a fotógrafa que, em 2015, foi nomeada candidata a entrar na cooperativa Magnum. Depois de várias desilusões com lideranças políticas, Tavakolian, que se estreou a trabalhar em jornais aos 16 anos, começou a experimentar outras linguagens na fotografia, procurando dizer sempre o que pensa, mas mantendo uma certa ambiguidade, procurando fugir ao explícito (“A versão moderna da poesia é seguramente a fotografia”).

Ao longo de “apenas” oito grupos temáticos, o trabalho de mais de seis dezenas de fotógrafos foi escolhido de forma cirúrgica para representar visões pessoais e subjectivas que sejam sinónimo de “vitalidade criativa e que representem a realidade do quotidiano”. Entre A Convulsão — sobre os acontecimentos que levaram à revolução de 1979 e em que se destacam as imagens documentais de Kaveh Kazemi e Bahman Jalali, que revelam uma fome de registo solto até então proibido — e Le cinema poète — onde não podiam deixar de estar, entre outros autores, as fotografias de Abbas Kiarostami —, há reflexões sobre as marcas deixadas pela guerra (Goar Dashti e Mohsen Rastani), sobre identidade (Mehregan Kazemi, Shadi Ghadirian, Mohsen Yazdipur), sobre a resignação (Arya Tabandehpoor), o choque da realidade (Tahmineh Monzavi e Arash Khamooshi) e a crise ambiental (Azin Haghighi).

Para além de um nível curatorial elevado, a montagem de Iran, Année 38 dá uma lição sobre como diluir as fronteiras e os engavetamentos por género que, regra geral, ora andam ligados ao vasto campo das artes visuais ora ancorados no documental.

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Muito do imaginário da revolução e da guerra ainda está na cabeça dos iranianos, mas há um desejo de esquecer essas cicatrizes Shadi Ghadirian, Qajar, 1998/Cortesia da artista e da Galeria Silk Road/Teerão

Viva Latina!

À boleia do ano França/Colômbia, que este ano se celebra, os Encontros de Arles puseram em marcha uma ambiciosa programação com os países da América Latina debaixo de olho. Sem fazer pender demasiado o lote de exposições da secção oficial a favor desta região, as quatro propostas apresentadas afirmam-se num equilíbrio perfeito entre história (Pulsões Urbanas. Fotografia Latino-Americana, 1960-2016), homenagem a grandes autores (Paz Errázuriz — Uma Poética do Humano), contemporaneidade (La Vuelta) e descoberta (A Vaca e a Orquídea — Fotografia vernacular colombiana). Comissariada por dois profundos conhecedores da história da fotografia da América Latina, María Wills Londoño e Alexis Fabry, Pulsões Urbanas joga ao ataque e assume opções provocatórias para dar conta da natureza convulsa e da identidade conflituosa das grandes cidades sul-americanas. Uma selecção cheia de extraordinários autores (Fernell Franco, Johanna Calle, Armando Cristeto, Juan Castañeda, Jorge Ortiz...), que, provavelmente, estarão fora do radar da maioria dos visitantes da exposição, revela a enorme consistência da colecção privada de Leticia e Stanislas Poniatowski, que desde há 15 anos se dedica à criação fotográfica da América Latina, dando uma atenção especial aos trabalhos sobre o meio urbano.

Uma Poética do Humano, individual de Paz Errázuriz, traça os pontos altos da longa carreira daquela que é uma das autoras mais importantes da fotografia sul-americana. Profundamente marcada pela ditadura de Pinochet (1973-1990), durante a qual começou a fotografar agindo contra todas as regras que a impediam de se movimentar livremente por entre as franjas da sociedade (lutadores, artistas de circo, mendigos, travestis, alcoólicos, doentes mentais, cegos, prostitutas), a prática fotográfica de Errázuriz, que em 2015 representou o Chile na Bienal de Veneza, assenta na curiosidade pelo humano, nas suas histórias de vida (são marcos relevantes as séries sobre lutadores de boxe ou sobre travestis, como Evelyn).

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O trabalho de Paz Errázuriz procura sobretudo o rosto humano Paz Errázuriz, da série Evelyn, 1983/Cortesia Galeria AFA, Santiago do Chile

Mais perto da actualidade, La Vuelta, que anuncia logo à partida que a melhor forma de compreender um país é olhar para o que estão a fazer os artistas, apresenta trabalhos de 28 autores colombianos contemporâneos de várias gerações que usam a fotografia. La Vuelta, expressão retirada de uma obra de Juan Fernando Herrán, assume no contexto da exposição, um significado tríplice: pode apontar para uma acção ilegal (roubo, assassínio, tráfico de droga...), conforme o calão usado na obra de Herrán; a vuelta com origem no jargão do ciclismo para, etapa a etapa, fazer um tour pela produção artística do país; e a vuelta num sentido mais político do termo, tendo em conta o recente regresso da Colômbia aos tempos de paz, depois de 60 anos de conflito entre o Exército e os guerrilheiros das FARC, bem como a reconquista do apreço da cena internacional simbolizada no recente Nobel da Paz atribuído em 2016 ao Presidente Juan Manuel Santos.  

No campo da surpresa, A Vaca e a Orquídea (dois símbolos da Colômbia) aposta numa montagem que consegue ser mais kitsch do que o kitsch, proporcionando uma viagem ofuscante e hipnótica a partir da colecção particular do britânico Timothy Prus, responsável pela muito sui generis chancela de fotolivros Archive of Modern Conflict, um editor para quem “a Colômbia, tal como a fotografia, nunca é aquilo que pretende ser”. Escusado dizer que o humor e a música são uma constante do princípio ao fim desta divertida manta de retalhos (fotos tipo passe, álbuns pessoais, capas de discos, revistas, pretensa fotografia de autor, fotorreportagem, fotografia histórica vintage.). É uma exposição que, à falta de outro objectivo imediatamente identificável, tem o condão de nos lembrar os lugares onde a imagem é, afinal, mais celebrada. Ou seja, o diluir de fronteiras entre o vernacular e o canónico, ou a possibilidade de, pelo menos, coexistirem no mesmo festival. 

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As imagens de luta livre ocupam um lugar especial na paródia imagética que é a exposição A Vaca e a Orquídea, feita de fotografia vernacular colombiana Cortesia de Manuel H.

Ainda menos fronteiras

Ainda no campo da dissolução de fronteiras que um festival de fotografia pode proporcionar, os Encontros de Arles deste ano dão “trânsitos livres” para entrar em territórios altamente fascinantes, como o do mundo erotizante, fetichista e semi-secreto em que vivia o fiel de armazém suíço Karlheinz Weinberger (1921-2006), objecto de um recente reconhecimento internacional que fez esboroar a mais do que estafada arrumação entre “amadores” e “profissionais”. Permitem-nos ainda espreitar os mais profundos interstícios da mente do sul-africano Roger Ballen, através da sua casa-instalação, onde também cabe fotografia e onde se pode observar in situ a panóplia de fantasmas, medos, obstinações, fobias, ansiedades, sustos que lhe povoam os sonhos (e/ou os pensamentos quando está acordado); ou participar no radicalismo estético operado por Masahisa Fukase, naquela que é a primeira retrospectiva na Europa da obra de um dos mais influentes e místicos fotógrafos japoneses, que, para além de um repetido estudo performativo de si próprio, integrou nas suas criações a família, o amor, a amizade, a solidão e a mortalidade, numa atitude e prática artística inovadora que não reconhecia fronteiras entre vida e arte; descobrir os mundos fotográficos solitários de Kate Barry e da actriz Audrey Tautou, ambos na abadia de Montmajour, um lugar sereno e introspectivo, condições óptimas para se compreender o quanto a fotografia também pode funcionar como uma terapia.

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O mundo solitário e poético da imagética de Kate Barry é uma das boas surpresas dos Encontros deste ano Kate Barry, da série Wild Grass, 2006/Cortesia de Gallois Montbrun & Fabiani
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