“Não quero que as pessoas vejam o meu filme porque foi a Locarno”

Pedro Cabeleira filmou Verão Danado com amigos e colegas, quase sem orçamento, ao sabor do improviso e da necessidade de filmar. Uma primeira longa sobre “pessoas normais”, filmada “fora do sistema”.

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Rui Gaudêncio

“Evidentemente que é óptimo ir a Locarno! Mas é um pretexto. Os festivais continuam a ter esse peso, a ser um pretexto muito forte para os filmes serem falados, serem vistos pelos canais certos, e poderem abrir portas para outras pessoas verem.”

Lida assim, a seco, pode parecer uma afirmação pragmática, calculista. Ouvida a Pedro Cabeleira, numa manhã ventosa de Julho num café de Lisboa, não. Não se sente nada de calculista no discurso de um rapaz de 25 anos cuja primeira longa-metragem acaba de ser seleccionada para o 70º Festival de Locarno. Verão Danado vai estar a concurso na competição secundária Cineasti del Presente, dedicada a primeiras e segundas obras, num festival que tem prestado especial atenção ao cinema que se faz em Portugal. Cabeleira, que terminou o curso na Escola Superior de Teatro e Cinema (ESTC) em 2013, sucede nesta secção a Gonçalo Tocha, que teve uma menção especial em 2011 com É na Terra, Não é na Lua.

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Rui Gaudêncio

Ficção rodada ao longo de um ano com uma equipa de amigos e colegas de escola de Cabeleira, sem dinheiro a não ser o investido pelos próprios, Verão Danado não é um filme feito “contra” o sistema; acabaria por obter o apoio à finalização do ICA e surge com o apadrinhamento da produtora OPTEC de Abel Ribeiro Chaves (onde Pedro Costa tem feito a sua “casa”). Mas é, isso sim, um filme feito “fora do sistema”, tal como muita da produção portuguesa contemporânea mais “desenrascada”. Menos por questões de financiamento e mais por uma questão de urgência, como diz Cabeleira: “Não queríamos esperar. Tínhamos de fazer um filme agora, assim que acabássemos a escola, ou acabávamos viciados pelo sistema.”

“A minha turma,” explica, “foi das primeiras a entrar na ESTC com muita gente com 18 anos. Sentíamo-nos como se estivessem a preparar-nos para o sistema do ICA, dos festivais, e a minha turma não foi muito à bola com isso. Víamos como as pessoas que esperavam para fazer filmes cá acabavam por entrar numa coisa meio viciada. Claro que era mais confortável eu ir agora para uma produtora onde ia ter uma série de funções como assistente de realização, que ia assegurar uma determinada estabilidade, e daqui a dez anos eu seria como esse realizador... Mas não queríamos passar por isso. Não quero ser realizador daqui a dez anos: quero ser realizador neste momento.”

A resposta de Cabeleira foi, então, fundar uma pequena produtora com colegas do curso e avançar para uma longa-metragem que começou por ser pensada como um work-in-progress inspirado pela vida real. “Quando comecei, a ideia era fazer uma espécie de diário que eu queria filmar quase por ordem cronológica, livre de uma ideia de argumento, inspirado pelas coisas que iam acontecendo na minha vida e nas vidas dos meus colegas e amigos.” Pedro Marujo, um jovem actor que Cabeleira conheceu no ESTC (“era o único actor que eu não conhecia, e era difícil escolher alguém que eu conhecesse para o papel”), aceitou entrar na aventura. Chico, a sua personagem e centro de gravidade do filme, é um licenciado em filosofia que não sabe bem o que o futuro lhe reserva, que o fio de história acompanha ao longo de um verão de sexo, drogas e rock’n’roll.

Alternando entre cenas ensaiadas com o elenco e posteriormente escritas e outras improvisadas no momento, Verão Danado tem qualquer coisa de “filme-estafeta” onde Chico vai visitando grupos de amigos — “quase um pretexto para poder descobrir outras personagens, para dar uma ideia de cosmos”, diz Cabeleira. As suas influências vieram, curiosamente, mais da literatura do que do cinema — “na altura do filme andava a ler a Piada Infinita do David Foster Wallace, e andava completamente fascinado com a forma como ele aplicava pequenos momentos com cada personagem mas sempre com uma profundidade qualquer. Tentei transpor essa ideia de cosmos que costumo ver muito na literatura, como no Foster Wallace ou no Thomas Pynchon, mas que não costumo ver em cinema”.

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Um licenciado em filosofia que não sabe bem o que o futuro lhe reserva...o fio de história acompanha-o ao longo de um verão de sexo, drogas e rock’n’roll
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É daí que vem a dimensão “coral” de um filme que “não tem pretensões de estar a falar sobre uma geração”. Mas que é, certamente, “filme de geração” na medida em que foi feito com amigos e colegas da ESTC; a direcção de fotografia, por exemplo, é de Leonor Teles, a autora de Balada de um Batráquio, que foi colega de turma do realizador. “Tive menos condições que um filme de escola,” ri-se, “e tentei tirar o melhor partido disso. A minha ideia era tentar pegar nas melhores coisas que os filmes de escola têm, porque eles têm coisas boas, e fazer um apanhado disso.”

Verão Danado vai agora “entrar no sistema” com a selecção para Locarno — o filme já tem distribuição em sala assegurada (pela plataforma de VOD Filmin) e agente de vendas internacional. “O mais importante de Locarno é a forma como pode chamar a atenção das pessoas para ver o filme — e eu sabia que se estreasse lá fora primeiro ia ter mais atenção”, reconhece o realizador. “Os filmes [portugueses] são sempre falados como uma identidade artística muito forte, etc. Mas nunca vejo uma pessoa ir ver um filme por causa da sua identidade artística muito forte! Não quero que as pessoas vejam o meu filme porque foi a Locarno, mas porque é um filme sobre pessoas normais. Quero mesmo muito que um gajo de 20 e tal anos de Ponte de Sor ou do Entroncamento ou do Porto veja este filme e sinta que gente da sua idade está a falar sobre ele.”

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