Tomam banho depressa, enterram lixo orgânico, partilham carro eléctrico

Ele desenvolve protótipos de carros ecológicos, ela ajuda a construir cidadania. Antónia e Miguel Ângelo Silvestre ensinam os filhos a respeitar o planeta com o exemplo que lhes dão em casa, na Covilhã. Primeira de uma série de cinco reportagens sobre famílias com estilos de vidas mais sustentáveis.

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Um emaranhado de ervas aromáticas numa varanda. Uma linha de recipientes para a separação de resíduos na outra. Regador no chuveiro (a primeira água fria serve para as plantas, o aquário, o balde da esfregona). Garrafa dentro do autoclismo (para dosear as descargas de água na sanita). Todo o apartamento da família Silvestre denuncia preocupação com o ambiente.

Conheceram-se muito novos. Frequentavam a Universidade da Beira Interior (UBI). Miguel Ângelo saíra de Loulé para integrar uma turma de Engenharia Aeronáutica. E Antónia saíra de Amarante para integrar uma turma de Sociologia. Decidiram fazer vida no Centro, ali mesmo, na Covilhã.

Contam 44 anos. Ele é investigador/professor no Departamento de Ciências Aeroespaciais. Anda entusiasmado com o desenvolvimento de protótipos de carros ecológicos. Ainda em Maio, a sua equipa participou numa prova internacional, a Shell Eco Marathon Europe 2017, no Parque Olímpico Queen Elizabeth, em Londres, e obteve um 11.º lugar. E ela é técnica da CooLabora, uma cooperativa de consultoria e intervenção social. Anda entusiasmada com a construção de cidadania.

Ainda estudantes, já se inquietavam com os destinos do planeta. Liam com avidez a revista Fórum Ambiente (1994/2003). Começaram a separar o lixo antes de a cidade estar preparada para isso. A caminho de um dos seus primeiros empregos, na Adesgar - Associação de Defesa e Desenvolvimento da Serra da Gardunha, Antónia parava no Fundão para deixar tudo no ecoponto.

Ao tempo que isso foi. Agora, há 43 mil ecopontos espalhados pelo país. Segundo o estudo Hábitos e Atitudes, desenvolvido pela Intercampus para a Sociedade Ponto Verde em 2015, sete em cada 10 famílias portugueses separam o lixo. O que não quer dizer que a separação esteja a ser feita de forma correcta ou suficiente. Só 13% dos resíduos chegam aos ecocentros como deve ser.

“Beatriz, dois minutos!”

Antónia e Miguel ângelo procuram transmitir um certo modo de estar no planeta à descendência. Têm duas filhas (Carolina, uma estudante de Medicina de 21 anos, e Beatriz, uma estudante de Engenharia Aeronáutica, de 18 anos) e um filho (Henrique, de oito anos, que quer ser geólogo ou arqueólogo, ainda não sabe muito bem). “Fazemos uma educação informal em casa”, diz Antónia. “Eles aprendem com o exemplo.”

O rapaz ainda é pequeno, mas não lhes passa pela cabeça que as raparigas sejam capazes de deixar a água a escorrer enquanto esfregam os dentes ou a cabeça. “E não acredito que alguma delas conceba não fazer separação de lixos”, comenta Antónia, enquanto prepara uma limonada. Não é tudo favas contadas. A hora do banho nem sempre é pacífica. Amiúde, Antónia dá por ela a notificar: “Beatriz, dois minutos!” E a rapariga reage: “Tenho o cabelo muito comprido!” O uso do secador é outra luta. Beatriz tem cabelo ondulado e gosta de o esticar.

Beatriz, a rapariga de que agora se fala, não está neste confortável duplex. Está na universidade, às voltas com um projecto. Carolina também não. Está a fazer um intercâmbio no estrangeiro. E Henrique não está para conversas, depois de um dia inteiro num workshop de filosofia infantil. Está enterrado no sofá da sala com o comando na mão. Os detalhes destinados a reduzir a pegada ecológica, esses, estão por todo o lado. Painéis solares no telhado, lâmpadas de LED nos tectos, um pequeno recipiente preto para lixo orgânico na banca da cozinha….

Quando o balde preto está cheio, é despejado num bidão metálico, que fica na varanda – junto ao recipiente para o plástico, o recipiente para o vidro, o recipiente para o papel. Uma vez por semana, Miguel Ângelo leva-o para um terreno agrícola, que têm a 10 quilómetros da cidade. Foi uma aprendizagem. Começaram por usar uma vasilha de plástico. “Volta e meia, estava partida”, diz ele.

Não era só a fragilidade da vasilha. Alternavam camadas de lixo orgânico com camadas de folhagem ou de terra. No Inverno, nada a dizer. O processo de decomposição tarda. No Verão, depressa sentiam os cheiros e os mosquitos. Desde que descobriram o bidão de inox, esses problemas acabaram.

As temperaturas podem ser extremas nas faldas da Serra da Estrela. Uma brasa capaz de pôr a água a escaldar no Verão, um frio capaz de a fazer gelar no Inverno. E o aquecimento central não se liga, aqui dentro, a não ser quando Antónia, Miguel Ângelo e os três filhos regressam das férias do Natal.

No Verão, quem chega primeiro, abre as janelas para deixar a casa arejar um pouco. No Inverno, quem chega primeiro acende o fogão a lenha que está num canto da cozinha e a lareira que está encrustada numa parede da sala para a aquecer. Do fogão sai uma tubagem que sobe pelas paredes.

Um carro eléctrico para todos

O lixo orgânico, que Miguel leva do apartamento para o terreno, serve para fertilizar a terra. “Plantamos coisas, nada de muito a sério”, admite ele. “São pequenas experiências. Temos posto árvores que têm vingado. Ameixeiras, pessegueiros, damasqueiros, macieiras, cerejeiras, medronheiros, aveleiras, pinheiros-mansos.”

Gostavam de plantar mais. “Fizemos algumas experiências e abandonámos”, recorda Antónia. “Púnhamos tomates, pimentos, fazíamos camas elevadas, saíamos e a produção ficava ao abandono. Sair no Verão, porque não temos a nossa família cá, implica deixarmos à sede aquilo que semeamos.”

De onde vem este modo de estar? “Tenho alguma influência dos meus pais”, responde Miguel Ângelo. “Eram os dois professores, mas andavam sempre preocupados com o facto de o país estar a desprezar o sector primário. Tanto que estão reformados e dedicaram-se à agricultura. Retiram boa parte da alimentação deles da terra, o que é um luxo, porque o que eles produzem não tem químicos.” Antónia, por sua vez, tem um passado rural. “Em família, fazíamos produção agrícola. Era uma alegria participar nas vindimas ou na colheita da batata. Era um convívio.”

Um dia, hão-de mudar-se para os doze hectares que compraram há 15 anos. O seu sonho é transformar aquele lugar num exemplo de vida sustentável. Para já, grassa mato entre as árvores. “As coisas arrastam-se e, com três filhos, o dinheiro não estica”, comenta Antónia. Não é só o dinheiro. “É a dez quilómetros da cidade. Não tem vizinhos. Há sempre aquele receio. Às vezes, afasto-me. Ficaria a Antónia sozinha”, diz Miguel Ângelo. “Se houvesse um incêndio ali, tínhamos dificuldade em sair”, torna Antónia. “Temos alguns receios, mas também temos muita vontade de sair do apartamento e de estar em nossa casa, de fazer investidas na agricultura”.

Olham para aquele terreno como uma aposta no futuro. Muitas vezes, quando estão sentados à mesa, discutem o curso da economia, o fim do emprego tal como o conhecemos, as implicações de um aumento súbito e expressivo do preço do petróleo, a necessidade de se encontrarem formas de vidas mais sustentáveis.

Evitam comprar alimentos embalados. Vão ao mercado municipal, com os seus sacos reutilizáveis, comprar frutas, legumes, carne, ovos, queijos e enchidos aos produtores locais. Fazem o seu próprio pão à moda alentejana. Usam as frutas excedentes para fazer compotas, geleias e gelados. Esforçam-se para partilhar o carro eléctrico. E isso, admite Antónia, gera algum stress.

De manhã, Miguel Ângelo vai ao volante, deixa o filho, Henrique, na escola/ATL, e Antónia nas instalações da CooLabora e segue para a UBI com Beatriz. Por regra, almoçam em casa, o que obriga Antónia, a quem cabe maior quota de cozinha na divisão de tarefas domésticas, a deixar as refeições adiantadas na véspera. De tarde, Antónia vai ao volante, deixa Henrique na escola/ATL, Miguel e Beatriz na UBI e segue para um projecto que funciona em Tortosendo, a sete quilómetros da cidade. Havendo bom tempo, Miguel vai amiúde trabalhar de bicicleta. São dois quilómetros e meio que exigem alguma preparação física. A Covilhã é uma encosta de ruas e ruelas inclinadas.

Têm um carro a combustão, mas esse pouco anda durante a semana. Compraram um carro eléctrico em Fevereiro. “Talvez tenha sido um bocadinho cedo demais, porque o eléctrino neste momento é que está a começar a ser ponderável”, refere Miguel. E não para quem vai longe. “Faz 60 a 70 quilómetros por dia, não pode fazer uma viagem, mas como carro para o dia-a-dia é excelente."

Os políticos sentem-se cada vez mais pressionados para banir os carros a gasolina e a gasóleo, cujas emissões contêm partículas poluentes relacionadas com vários problemas de saúde. E as grandes marcas estão a preparar-se. Um relatório divulgado em Junho pela Agência Internacional de Energia indicia que a mudança está a acontecer: “O stock global de carros eléctricos, composto principalmente por veículos eléctricos a bateria e veículos eléctricos híbridos, superou 2 milhões de unidades em 2016. Isto representa um aumento de 60% em relação a 2015”.

Os portugueses também olham cada vez mais para os combustíveis alternativos. Segundo a Associação Automóvel de Portugal, no ano passado os híbridos a gasolina ultrapassaram pela primeira vez a quota de 1% do mercado. Os híbridos plug-in e os veículos a gás representam metade disso cada um. Os carros 100% eléctricos quase outro tanto ( 756 unidades vendidas).

Miguel Ângelo está convencido de que a tendência será para “manter o preço e fazer baterias maiores”. E que dentro de poucos anos se vulgarizarão baterias com uma autonomia de 300 quilómetros. “É tão mais barato andar com o eléctrico. Não chega a um euro e meio aos 100 quilómetros.”

O desenvolvimento de protótipos ecológicos empolgam-no. Da equipa que coordena fazem parte alunos dos vários anos do Mestrado Integrado de Engenharia Aeronáutica. Trabalham na electrónica, no motor, nos sistemas de travagem, na construção do protótipo. O aluno que desenvolveu o motor eléctrico que levaram a Londres deve prosseguir o trabalho com bolsa de doutoramento. Nas quatro corridas de 39 minutos, chegou a obter um resultado de 371,7km kilowatt-hora (kWh). São 371,7km por 16 cêntimos, o preço médio por kWh praticado em Portugal.

Construir cidadãos activos

A luta de Antónia trava-se noutra frente. Faz-se a partir do Quero Saber +, um projecto promovido pelo Agrupamento de Escolas Frei Heitor Pinto e gerido pela CooLabora que faz parte do Escolhas, o programa governamental destinado a promover a inclusão de crianças e jovens de contextos vulneráveis. A tarefa dela é impulsionar a “construção de cidadãos activos”.

No centro da freguesia de Tortosendo, há um grupo de jovens que organiza as suas rotinas em torno do projecto. Alguns arrumam-se num cantinho do espaço, que ajudaram a decorar, a discutir o que é isso de ser um cidadão activo. “Um cidadão activo é um cidadão que constantemente se envolve em actividades para melhorar as condições de vida de todos”, diz um dos mais velhos, Pedro, de 18 anos. “Ser cidadão activo é tentar perceber o que se pode fazer para ajudar a desenvolver e as condições de vida da sua comunidade e das comunidades em redor”, acrescenta Eduardo, de 20.

Todos se envolvem em diversas iniciativas. E têm as suas pequenas vitórias para contar. Já participaram em campanhas, por exemplo, de angariação de dadores de sangue. Estiveram a ajudar a ouvir a população do bairro social do Cabeço, que inclui uma pequena comunidade cigana marcada pelo absentismo e pelo abandono escolar precoce. O projecto tem ali uma extensão.  

A equipa técnica tem estado a incentivar os moradores do Bairro do Cabeço a dizer o que pensam sobre a vida naquele conjunto de 148 fogos construídos em bloco, sem qualquer sítio para estar, sequer bancos ou árvores, e o que deve ser feito para a melhorar. Os apelos permanecem nas paredes da sala situada num rés-do-chão: “Expressa-te”, “participa”, “não se cale”, “fale”.

Os jovens ajudaram a ouvir a população, que pediu áreas de recreação para adultos, como espaços para jogos, que sirva de suporte às áreas de recreação infantil. E a câmara canalizou a verba necessária no âmbito do orçamento participativo. Um grupo de moradores do Bairro do Cabeço também esteve na assembleia municipal a reivindicar que um autocarro passasse por ali, a caminho do centro da cidade e com paragem pela vila. E este processo deu o resultado pretendido.

“Acho que devemos correr atrás dos nossos sonhos”, resume Antónia. “Cada um deve caminhar para o seu ideal, para a sua utopia, mas devemos ser conscientes nos nossos sonhos. Essa consciência transmite-se em todos os actos. Essa consciência pode ser ecológica, social. É uma consciência alargada.”

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