As máquinas e o mundo

Gonçalo M. Tavares arrebata e conjuga proveniências. Da lengalenga infantil, à mitologia clássica.

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Tudo parece devir uma espécie de alegoria extensível. Um modo de tornar suportável o insuportável, o grotesco até Nuno Ferreira Santos

Em vários planos, a velocidade é o traço que subsume A Mulher-Sem-Cabeça e o Homem-do-Mau-Olhado, obra entre Canções Mexicanas e Uma menina está Perdida no seu Século à Procura do Pai, obra que inaugura uma nova série do autor — Mitologias. Transformação contínua de cena, progresso e repetição que faz diferir o que se repete (eterno retorno do mesmo mais além, já outro) e, ao mesmo tempo, repetições que soam a ladainhas e tornam quase musicais momentos do texto, na mesma frase ou precipitam-se em andamento seguinte, pautam o fluxo, garantem-lhe homogeneidade. Velocidade, tributo reunido na figura do comboio: velocidade tal que enlouquece quem nele entra. Velocidade do que acontece, se metamorfoseia e do estilo que sustenta o que se narra. Velocidade então que parece cegar quem escreve e quem lê. Os capítulos são relativamente curtos (meia, uma, duas ou três páginas). Também o leitor, se aceita o pacto, aderindo, como aquele que apanha o comboio numa estação e ao sair é já outro, enlouquecido. É engolido por este vórtice que tudo absorve e configura uma visão do mundo, da máquina sempre em ebulição do mundo. ACELERAÇÃO, MECANISMO e MÁQUINA — os alicerces subliminares desta narrativa.

O quadro em que tudo isto se passa é do domínio do maravilhoso, da irrealização. Maravilhoso, isto é, total inverosimilhança das figuras, da abolição do tempo, da particularização de qualquer espaço. De, ao contrario do fantástico, tudo se processar sem surpresa nem medo. Tudo parece devir uma espécie de alegoria extensível. Um modo de tornar suportável o insuportável, o grotesco até — a visão negra do mundo do autor que tal como Kafka chega a provocar muitas vezes o riso. O trágico arrasta consigo o grotesco, o absurdo desfaz a “seriedade” e o tempo cronológico: a “Mulher-Sem-Cabeça” foi vítima do marido, e de um machado que este tomou em mãos. Ele queria mais espaço na cama. Quando o cinema chegou, ela insistiu logo ficar na fila da frente. Este livro está cheio de pormenores e situações hilariantes. O absurdo levado ao extremo.

São forças, fluxos de energia que cumprem uma função, vectores muito além, ou ao lado, de qualquer atributo singular, psicologizante. Se alguma empatia se estabelece ela é pelo Homem-do-Mau-Olhado. O ethos do todo é, porém, deceptivo, disfuncional e repleto de comicidade. Precipita o leitor num mundo outro, coerente e coeso, mas outro, a-subjectivo, atemporal. Mítico, manipulam-se arquétipos. O presente aoristo, ilimitado, domina. E é essa dimensão fora do tempo e do sujeito, um agenciamento maquinal que engrena o homem, ele próprio possuído pelo devir máquina, mecanismo autónomo com vida própria.

GMT arrebata e conjuga proveniências. Da lengalenga infantil, passando talvez por Alice, estórias quase macabras para crianças (aqui, por exemplo, o lobo que ameaça a criança perdida no Labirinto, uma Floresta de Máquinas cujo funcionamento sustenta o funcionamento do mundo e cujo desarranjo de uma peça paralisa o curso Mecânico do todo) à mitologia clássica, nomeadamente a Medusa, e dados da antropologia (costumes de uma tribo índia norte-amerinana, O-Kee-Pa): o Homem-do-Mau-Olhado cega, depois de sujeito a um ritual cruel de iniciação acabará por cegar e faz o movimento mas não vê a mulher, aquela que lhe estava desde a nascença prometida. O escritor convoca dados científicos que sustentam cenários, o rigor da ciência suporta a imaginação prodigiosa, choque paradoxal de campos: Izidore Geoffrey que fundou a teratologia ciência que estudava as monstruosidades e as anomalias: o Homem-Mais-Alto que lidera a Revolução é um gigante. Tem dois metros e trinta e cinco. Ele sabe que vai morrer cedo, ”é preciso acelerar”. A Revolução avança, o importante é não tremer, tremer é revelar-se culpado. O fim é hilariante, uma reviravolta moral: os três filhos do Homem-do-Mau-Olhado, cujos olhos lhe tinham sido arrancados, olham para os juízes: “os juízes, esses tremem, tremem muito, tremem demasiado”. Assim, o autor usa vários dados do foro científico para suportar delírios: os choques eléctricos e as lobotomias do Doutor Charcot, o primeiro neurologista, que literalmente neutralizam os rostos de muitos da cidade controlando a sua expressão já anestesiada, tornada mecanismo –“Os músculos reagem autonomamente”, como as máquinas e “aquele rosto é uma máquina cujo modo de funcionamento só Charcot conhece”.

Muitos dos ícones usados reenviam para múltiplas e sobreponíveis direcções, multiplicam a polissemia: é o caso de Berlim. Senhor de uma só o identidade antes de, por curiosidade entrar no comboio, comboio que havia já esmagado muita gente pela sua desmedida velocidade e que à saída se encontra louco, separado de si mesmo, partido por um muro, isto é, um hífen que une e desune, e desdobram as possíveis interpretações: BER-LIM.

Mas outros são os recursos a números, tabelas, séries e máquinas, personificação alegórica de animais — a Aranha, a Avestruz), feitos históricos transfigurados que engrenam a imaginação literária.

Na narrativa individuam-se traços que se reconhecem, que em separado, oriundos de tempos e geografias distintas, aqui se reúnem, se alinham e reiteram num fluir torrencial. Essa combinação entre dados científicos irrefutáveis e a criação literária, num mesmo fluxo, é uma das características de GMT. Por exemplo, aquando da Revolução Russa, a família Romanov foi executada. as crianças encontram-se agora neste território sem território que é o desta narrativa: Alexandre, Olga, Maria, Tatiana e Anastácia que terá escapado. Ber-lim gosta de crianças e ”cinco seguem-no de manhã para ver a casa das máquinas da história mundial.”À revelia entrou também um lobo. Lá dentro um calor imenso. Anastácia, a mais pequena) perde-se naquela Floresta de máquinas enquanto as outras jogam à macaca tendo traçado a giz no chão as linhas do jogo.

A Revolução, liderada pelo Homem-Mais-Alto, que haveria, por causa do gigantismo, de morrer cedo é insaciável . “Para escapar à Revolução, alguns homens decidem construir uma máquina que possa voar”: a Máquina-de-Voo. Imobilizada pelos passos impiedosos da Aranha, devorado o seu cérebro pela Avestruz, a Mulher-Ruiva olha o céu, vê uma faixa publicitária na cauda da Máquina-de-Voo.

Muitos nomes comuns devém nomes próprios e são estes os sujeitos motores da acção, os actantes de um devir máquina global. Peças de um mesmo mecanismo imparável. Cada uma se animiza, atravessa o tempo sem tempo do mito e reúne forças que se aglutinam graficamente entre traços. E há entidades animizadas e que valem por si: Labirinto, a Revolução, a Caminhada-Muito-Extensa e ... muito mais.

No fim, a tal reviravolta surpreendente que pode levar o leitor a reler a primeira página...   o imprevisível na Mecânica da máquina.

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