Romance da inocência e da experiência

Uma infância disfuncional no final do século XIX.

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James afirma que este romance é o exemplo “de uma pequena bolota que acaba por se tornar num ‘grande carvalho’” Alamy Stock Photo

Os romances e as novelas de Henry James (1843-1916) suscitam, por vezes, o curioso efeito, entre outros menos ilusórios, de parecerem poder ser condensados numa sinopse. A publicação póstuma dos cadernos de notas de trabalho que o autor manteve durante trinta anos talvez tenha contribuído involuntariamente para respaldar o equívoco. Encontramos aí planificações, por vezes muito detalhadas, de algumas obras e, sobretudo, inúmeros temas ou assuntos que James recolhe incansavelmente em diversas circunstâncias mundanas e que anota como podendo dar origem a outras tantas histórias. Blanchot encontra nesta obsessão intrigante e “patética” (ou será tocante?) uma maneira de James se defender do excesso da criação, daquele desregramento a que o protagonista de The Middle Years chamou “a loucura da arte”. Aliás, James — que continua sendo um dos mais exigentes, consistentes e conscientes artistas literários que conhecemos — deixou claro em The Art of Fiction (1884) que o anedótico, o incidental do argumento, não interessa nada do ponto de vista artístico — o que conta é o que o escritor consegue fazer com ou apesar do ‘tema’ (obviedade que continua sendo conveniente e necessário repetir).

De que trata, então, O Que Masie Sabia, romance originalmente publicado em 1897 e até agora inédito em Portugal? Nas anotações do escritor, o “tema” surge referenciado pela primeira vez em Novembro de 1892: tendo alguém falado, durante um jantar, do caso de uma criança vitimada pelo divórcio litigioso dos progenitores, conta James que o assunto lhe pareceu imediatamente poder dar origem a um conto ou uma novela. Três anos depois, a história de Masie surge já minuciosamente planificada (pronta a escrever, digamos assim) e deveria caber em “oito ou dez pequenos capítulos”. O romance acabou tendo 31 capítulos e várias outras alterações substantivas (por exemplo, os pais da protagonista, que tinham outros nomes, morriam, no primeiro bosquejo da história). Embora o arco temporal da acção — que decorre principalmente em Londres, com uma incursão final a Boulogne, na costa francesa — não seja explicitado, Masie tem cerca de seis anos de idade no início e — sendo este romance “um epitáfio na lápide da infância” da nossa heroína —, estará no limiar da adolescência no final.

A narração é feita na terceira pessoa por um narrador que aparenta ser omnisciente mas que se intromete algumas vezes na acção para confessar, por exemplo, os limites da sua competência (provocadora subtileza de mestre James). Num capítulo preambular (não numerado), cabe-lhe dispor os dados contextuais do jogo que vai seguir-se: divorciados, os pais de Masie combinam a guarda alternada do “pomo da discórdia”, mas só o fazem para poderem continuar a ter “uma oportunidade ininterrupta para a contenda”. Nada mais moderno, portanto. Depois, voltam a casar, mas o parafuso roda mais uma vez e o padrasto e a madrasta da criança acabam descobrindo as respectivas afinidades electivas… E Masie, por sua vez, descobre, enfim, que “com dois pais, duas mães e dois lares, seis amparos no total [contando com as duas amas, certamente], não tinha para ‘onde’ ir” (p. 99). Da inocência à experiência, eis um ‘romance de formação’ quase perfeito.

Manifestamente (e isto também testemunha a sua grandeza), Henry James não quis deixar os seus créditos em mãos alheias e, na primeira década do século XX, escreveu dezoito prefácios para a New York Edition que compilou a quase totalidade da sua obra ficcional (24 volumes publicados entre 1907 e 1909). Juntamente com os apontamentos de trabalho (recolhidos nos “notebooks” de póstuma edição) e com outros textos avulsos (The Art of Fiction, nomeadamente), estes prefácios são uma tentativa ambiciosa de ancorar e justificar teoricamente a sua obra literária (procurando também como que ‘educar’ os seus leitores futuros). A presente edição portuguesa publica, além de uma tradução excelente do romance, parte substancial do prefácio ao volume XI da referida edição nova-iorquina (que inclui O Que Masie Sabia e os contos The Pupil e In The Cage). Num texto eloquente, pelo modo como descreve a evolução estrutural da história, James afirma que este romance é “outro exemplo [o primeiro sendo The Awkward Age] de uma pequena bolota que acaba por se tornar num ‘grande carvalho’; já que O Que Masie Sabia é, no mínimo, uma árvore que se alastra muito para além de qualquer previsão que a sua semente pudesse, numa primeira aproximação, fazer crer”. E declina, mais uma vez, o famoso tema do ‘tema’: “qualquer tema se impõe […] assim que nos livramos da lei da expressão integral. […] a memória da minha própria obra não me traz nenhum tema que, seja em que etapa for do seu desenvolvimento, e apenas depois de haver esperado pelo momento certo em termos de relação ou oportunidade, não se recusasse assinalavelmente a permanecer humilde, mesmo (ou talvez ainda mais ressentidamente) quando gratamente escolhido pela sua humildade consciente e inapelável.” 

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