Teatralidades sacras e profanas no Festival da Póvoa de Varzim

A 39.ª edição do festival Internacional de música terminou este fim-de-semana.

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Capella Sanctae Crucis dr

Entre as últimas propostas do 39.º Festival Internacional de Música da Póvoa de Varzim, que terminou este fim-de-semana, sobressaem os concertos da Cappella Mediterranea de Leonardo García Alarcón, com a soprano Mariana Flores, e da Capella Sanctae Crucis, dirigida por Tiago Simas Freire. Dedicados a repertórios oriundos de contextos geográficos e culturais distintos, ainda que próximos no tempo, neles podemos encontrar eixos comuns como o diálogo entre o sagrado e o profano e a exploração da dimensão da teatralidade na música do século XVII. O primeiro, intitulado Teatro de Monteverdi, reunia um conjunto de êxitos monteverdianos, intercalados por trechos de Francesco Cavalli, compositor central na actividade recente de Alarcón. No segundo foi dado a conhecer o projecto “Zuguambé! – Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra (1640-1650) – Música para a Liturgia”, que ficará disponível em CD em Setembro na etiqueta Harmonia Mundi.

A Cappella Mediterranea de Alarcón e a cantora Mariana Flores são conhecidos pelo seu carisma e por uma abordagem interpretativa que, apesar de assente no saber de várias gerações no âmbito das práticas de execução históricas, dá frequentemente primazia ao impacto imediato em detrimento do rigor filológico e a uma espécie de imagem de marca da música da Europa do Sul caracterizada pela exuberância rítmica e emocional. O programa Teatro de Monteverdi não foi alheio a essa tendência, apresentando interpretações sempre ao rubro, lideradas por Mariana Flores. A sua bela voz, plena de luminosidade, e a flexibilidade e destreza com que a domina dão-lhe ferramentas essenciais para este repertório, mas a obsessão pela teatralidade e pela géstica levam com frequência ao exagero como sucedeu, por exemplo, no dilacerado lamento Disprezzata Regina da ópera L’Incoronazione di Poppea. A teoria dos affetti do Barroco e a inerente retórica musical reside em códigos mais sofisticados e subtis da relação texto-música do que em meras emoções à-flor-da-pele pintadas a traços fortes.

O programa incluía vários géneros da produção de Monteverdi, tendo sido iniciado pelo emblemático Prólogo Dal mio Permesso amato atribuído à personagem da Música no Orfeo. Trechos de ópera, madrigais, árias monódicas dos Scherzi Musicali e peças sacras da colectânea Selva Morale e Spirituale jogaram habilmente com a ambiguidade entre o sacro e o profano, assumida claramente pelo compositor no Pianto della Madonna (contrafacta do famoso Lamento de Arianna), mas também inerente ao estilo musical de páginas como Jubilet tota civitas e Laudate Dominum. Mais questionável foi a opção de incluir o genial Lamento della Ninfa numa versão em que o coro dos pastores foi substituído por partes instrumentais, descaracterizando assim a peça, não obstante o carácter cantabile das intervenções. De resto, quer como suporte da voz, quer nas secções puramente instrumentais, os músicos da Capella Mediterranea — Alarcón no cravo e no órgão positivo, Monica Pustilnik no chitarrone, Marie Bournisien na harpa e Teodoro Bau na viola da gamba — mostraram sensualidade sonora, destreza técnica e vivacidade rítmica. Como encore Mariana Flores cantou de forma incisiva Che si può fare de Barbara Strozzi e com exuberante salero  Romerico Florido de Matheo Romero.

O concerto da Capella Sanctae Crucis, grupo criado pelo cornetista Tiago Simas Freire, deu forma sonora a um laborioso projecto de investigação que tem por base fontes musicais inéditas do Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra que se encontram na Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra. Com orientação científica dos musicólogos Paulo Estudante e José Abreu (tendo Estudante realizado uma breve palestra de contextualização), pretende-se uma simbiose entre investigação e “interpretação historicamente informada”, mas desengane-se quem pensar que se trata de uma abordagem meramente académica. Formada por jovens músicos europeus especializados, a Capella Sanctae Crucis tem um elevado nível artístico e um sentido apurado do espectáculo na escolha dos alinhamentos, na teatralização de peças como os vilancicos “de negro” (nos quais se usam línguas e dialectos ibéricos e das colónias ultramarinas), nas escolhas vocais (com os oito cantores divididos em dois grupos e movimentação dos solistas) e instrumentais. Combina também de forma equilibrada o estudo das fontes com a liberdade de opções que a música desta época deixa em aberto, por exemplo nas escolhas tímbricas (através de uma rica panóplia de instrumentos que inclui cornetos, flautas, gaita, baixão, violas da gamba, harpa de duas ordens, guitarra, órgão, entre outros), no espaço para a ornamentação e a variação ou nas intervenções da percussão.

O programa seguiu uma espécie de “Ofício Imaginário”, ilustrativo da variedade de géneros usados em Santa Cruz de Coimbra, comunidade musicalmente autónoma formada por intérpretes, compositores e construtores de instrumentos e na qual se cultivava a polifonia em latim, vilancicos e cançonetas em vernáculo e música instrumental. Peças anónimas, mas também obras de compositores como Diego Alvarado, Agostinho da Cruz, Duarte Lobo e D. Pedro de Cristo, forneceram um quadro sonoro rico em colorido e contrastes, incluindo surpresas como a sinuosa e ornamentada linha vocal da Calenda de Natal, eloquentemente cantada por Marie Remandet. Aguarda-se com expectativa a edição do CD, que poderá dar a conhecer este repertório além-fronteiras.

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