A estação tola

Trump e os papéis dão-me cabo do descanso e do sono e, no caso dos papéis, até me ameaçam a integridade física.

Deve ser da estação tola, mas nestes dias de Verão com temperaturas abusivas a minha cabeça útil encolhe muito e só me interessam meia dúzia de coisas. Nem sequer é escapismo ou férias, coisas que habitualmente não faço do mesmo modo que o comum dos mortais, certamente com efeitos irreparáveis na mesma cabeça encolhida que se passeia em cima dos ombros. Férias significa apenas que tenho menos obrigações secundárias (como escrever este artigo) e mais tempo para me dedicar às obrigações principais (como seja “salvar” papéis, antigos e modernos, de há cem anos e de hoje, da máquina trituradora da ceifeira dos papéis, da Destruidora da Memória, da Inimiga dos Arquivos), ou seja, uma coisa excelente.

Presumo que aquilo que nestes dias me interessa não tenha o público, nem as audiências habituais, que teria se falasse sobre os fogos, sobre as aleivosias “do Costa”, os ciganos de Loures e a sua Nemesis local, os afectos presidenciais, os crimes de ciúmes e ganância, e a perfeição seria eu escrever sobre as “preparações” das “preparações” futebolísticas, a que se agarra uma televisão com síndrome de abstinência da bola. Nada disso, resta-me aquilo que, com a cabeça reduzida a metade pelo calor, me interessa. Ou seja, Trump e o perigoso reality show à sua volta, e os papéis, revistas, jornais e livros, mas mais papéis do que tudo o resto, porque há uma surpresa inscrita nos papéis que já poucas vezes tenho nos livros. (A Coreia do Norte lançou outro míssil...)

Trump e os papéis dão-me cabo do descanso e do sono e, no caso dos papéis, que de vez em quando resolvem desabar das pilhas em que deveriam estar sossegados, até me ameaçam a integridade física. A palavra é pomposa, mas eu já fui várias vezes agredido por pilhas de livros e papéis que resolveram deslocar o seu centro de gravidade sem autorização superior. E no caso de Trump e da animada corte à sua volta, melhor do que uma grande comédia, verdadeiro Guignol, resolvem fazer coisas interessantes desde as seis horas da manhã de lá, hora em que ele começa com o Twitter, até lá mais para a noite, quando as discussões mais animadas na CNN e na Fox se fazem. E a gente, apanhada por esse ópio da política bruta, dura e pura, fica a ver televisão às três, quatro horas da manhã por culpa dos fusos horários. Depois anda o dia todo feito zombie.

Claro que o que se passa na América de Trump é gravíssimo: é o esforço diário de um autocrata grosseiro, sem princípios, habituado a levar tudo à frente pelo dinheiro e pela ameaça, para subverter a governação de uma democracia, atacando as suas instituições e fazendo do bragadoccio o seu modo de vida. À sua volta mini-Trumps desavergonhados, palavra magnífica para os caracterizar, aparam-lhe todos os golpes, justificam-lhe as mais absurdas das coisas, como se o novo normal fosse aquela selvajaria. E não faltam mini-Trumps dos três sexos e uns ratinhos com medo de perder o republicano lugar, que se ele quisesse fazer uma ETAR Trump nas traseiras do Capitólio para “drenar o pântano”, justificariam de imediato o enorme alcance simbólico do acto vindo de um Presidente “não convencional”. A frase seguinte é que foi sendo assim “não convencional”, que ele ganhou as eleições, como se isso justificasse tudo o que ele faz baseado num único critério: o seu ego.

Na verdade, a América é hoje governada pelo único homem no mundo que viola as leis de Freud e só tem Ego e Super Ego, e não tem Id. Na verdade, tem, mas eu temo só de espreitar para essa caverna funda (por falar nisso, parece que a Associação dos Psiquiatras considera aceitável que se discuta publicamente o estado mental do Presidente...). A seu tempo far-se-á uma ópera sobre Trump.

Esta semana então foi mortífera, patética e ridícula, mas é mesmo assim tudo junto que as coisas se passam. O Presidente resolveu abrir uma guerra pública contra o seu mais que leal procurador-geral, membro do seu governo, apoiante da primeira hora, conservador e “trumpista” até à medula. Não foram só os insultos e as humilhações, foi a maldade pura e sem carácter de sugerir que Sessions, o primeiro senador que o apoiou, o fez por interesse eleitoral, numa altura em que não havia nada a ganhar em apoiar Trump. Depois, as aventuras de um mini-Trump, Scaramucci, com nome de uma personagem cómica da comedia dell’arte italiana, misto de criado e de vingador disfarçado, que faz um papel de palhaço. O homem que disse “amar” Trump em frase sim, frase não, Scaramouche representado por Scaramucci, fez umas declarações daquelas que a pudibunda televisão americana tem que estar sempre a fazer “piiii”, sobre o chefe do pessoal da Casa Branca a quem chamou paranóico e sobre a alma negra de Trump, habitualmente representado como Darth Vader ou como a Morte com caveira e tudo, Steve Bannon, a quem atribuiu um bizarro acto sexual muito ginasticado, ao estilo da serpente Ourobouros.

Nem tudo é mau nesta obsessão “trumpiana” que me assola. Pelo menos uma vez esta semana acordei com uma magnífica notícia, três corajosos senadores republicanos disseram a Trump que não mandava neles e votaram contra mais uma tentativa já desesperada de dar qualquer coisa ao Presidente que lhe permitisse vangloriar-se. Uma versão misteriosa de uma lei que era suposto não ser uma lei, a versão “magrinha” do “repeal”, sem “replace”, para acabar com o Obamacare não passou no Senado, apesar das ameaças directas de Trump a quem ousasse retirar-lhe um “win” da sua série de “win, win, win”. O abastardamento das instituições parlamentares, resultado das pressões de Trump que desejaria governar apenas por “ordens executivas”, e da subserviência dos republicanos que têm medo dele, é um dos aspectos mais preocupantes da pressão autocrática que Trump faz sobre o sistema democrático americano.

Depois de tudo isto, a máquina da propaganda faz as mais absurdas piruetas para o justificar e transformar a má-educação e falta de carácter, a ignorância e a grosseria numa manifestação de “inconvencionalidade”, de estilo anti-políticos tradicionais, de métodos empresariais, para agradar à “base”. Não sei o que mais me repugna, se Trump, se os gnomos republicanos, ou esta corte de empregados presidenciais escolhidos a dedo, e o Ministério da Propaganda e Espelho Narcísico que é a Fox News, por aquilo que os portugueses chamam “lata”.

Claro que com esta sucessão de malfeitorias, esta comédia que tem um drama por detrás — o drama do homem mais poderoso do mundo ser este — me tira do sério e do sono. E os papéis? Os papéis são o lenitivo para esta maldade do mundo. E como o artigo já está feito posso voltar para eles. Com a CNN ao fundo...

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