Censura não impediu imprensa de noticiar centenas de mortos nas cheias de 1967

“Urnas e coisas semelhantes não adianta nada e é chocante. É altura de acabar com isso. É altura de pôr os títulos mais pequenos”, determinou a censura. Presidente da República falou terça-feira desses tempos.

Foto
Memorial a algumas das vítimas das cheias de 1967 na zona de Vila Franca de Xira Pedro Cunha/arquivo

Chegaram tarde demais as ordens da censura para tentar minorar o impacto público da catástrofe das cheias que, na noite de 25 para 26 de Novembro de 1967, mataram centenas de pessoas em Lisboa e arredores. Aquela que foi uma das piores catástrofes de sempre em Portugal matou sobretudo gente pobre, muita dela a habitar casas abarracadas. Quantos? “Ainda hoje não se sabe com rigor. O mais provável é aceitarmos um número certamente superior a 500 mortos”, refere um trabalho apresentado num simpósio sobre catástrofes naturais em Santiago do Chile por três investigadores portugueses, em 2014. Francisco da Silva Costa, Miguel Cardina e António Batista Vieira explicam que a contabilidade oficial não ficou, de resto, muito aquém deste número: falou-se na altura em 462 vítimas mortais.

“Apesar de num primeiro momento se permitirem notícias sobre o assunto, a acção censória agiu para evitar leituras sociais da catástrofe e evitar que a comoção geral instalada adquirisse laivos de crítica política”, descreve o mesmo trabalho. “No dia 27 de Novembro, um telegrama da Direcção da Censura enviou a seguinte informação às delegações locais: ‘Gravuras da tragédia: é conveniente ir atenuando a história. Urnas e coisas semelhantes não adianta nada e é chocante. É altura de acabar com isso. É altura de pôr os títulos mais pequenos’. Dois dias depois, a 29 de Novembro, determinava-se: ‘Inundações: os títulos não podem exceder a largura de meia página e vão à censura. Não falar no mau cheiro dos cadáveres. Actividades beneméritas de estudantes – Cortar.’” O que não impede o fotojornalista Eduardo Gageiro e outros colegas seus de mostrarem aos portugueses já a 2 de Dezembro, em O Século Ilustrado, as dramáticas imagens da tragédia, nem de noticiarem centenas de mortos – muito embora se tivesse registado pelo menos um caso em que tiveram de ser transformados em “dezenas”.

A zona de Loures foi aquela onde morreu mais gente, apesar de o máximo de pluviosidade ter, de acordo com um boletim estudantil, ocorrido no Estoril. O Século Ilustrado acompanhou o regresso dos sobreviventes de Loures aos locais onde tinham morado: “Voltam para examinar o nada de resta dos seus haveres. Parcos haveres, que a zona não é de gente rica, que as grandes catástrofes são sempre com a gente pobre”. O papel dos estudantes no auxílio às populações entregues a si próprias marcou o corte definitivo de muitos deles com o regime.

A mesma investigação académica conta que, além de tentarem ocultar informação actualizada sobre o número de mortos, as autoridades portuguesas acusaram a imprensa estrangeira de produzir notícias tendenciosas sobre a forma como o Governo havia actuado. “A PIDE também interrogou então o correspondente da United Press International àcerca de uma informação dada por essa agência sobre protestos estudantis contra a actuação do Governo português em relação aos socorros prestados à população”, revela.

E os estudantes não foram brandos depois de terem deparado com cenários dantescos. Um deles, Rita Veiga, recordou 20 anos mais tarde a “força maligna” da lama nos bairros atingidos, “que “deixava atrás de si um cheiro ácido a humores orgânicos como se tivesse conservado em si a miséria das barracas que destruíra”.

A História de Portugal de José Mattoso explica como a “a viva e original denúncia do salazarismo” feita pelo movimento estudantil a propósito das cheias antecipa tempos de mudança: “Deixa adivinhar o advento de uma contestação radical que se desenvolverá plenamente após a queda política de Salazar”.

Esta terça-feira o Presidente da República recordou esses tempos quando se deslocou a Mação, concelho que o fogo tem teimado em não largar por estes dias. “Em ditadura, há 50 anos, era possível haver tragédias e nunca ninguém percebia bem quais eram os contornos porque não havia Ministério Público autónomo, juízes independentes ou comunicação social livre”, observou. “Em democracia há tudo isso e é uma riqueza”.

Sugerir correcção
Ler 8 comentários