Teias sombrias

Doze contos que mostram que o gosto de Mariana Enriquez vai para o bizarro, o inominável, até para o paranormal: As Coisas que Perdemos no Fogo.

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Mariana Enriquez, jornalista e ficcionista, gosta de histórias de fantasmas

Mariana Enriquez, jornalista e ficcionista, gosta de histórias de fantasmas e aprecia particularmente a região nordeste da Argentina, terra da sua família materna, uma zona  de fronteira — com o Brasil e o Paraguai — onde a confluência de várias culturas e maneiras de estar, o facto de serem todos estrangeiros, o calor e a humidade, as rápidas e pouco legais trocas comerciais, lhe suscitam um interesse particular. Adepta confessa da literatura “gótica” do sul dos Estados Unidos, transpõe para a Argentina — para a capital, Buenos Aires, mas também para outros territórios do seu país — o mesmo ambiente opressivo e tenebroso onde reinam as superstições, os cultos e espíritos locais e em que as personagens, oriundas de vários extractos sociais, se cruzam em belas avenidas ou em bairros da lata miseráveis, enfrentando situações bizarras ou sendo elas próprias agentes activas de um caos cintilante e macabro, reminiscente da prosa de Edgar Allan Poe e de Henry James .

A literatura argentina reflecte bem o pendão para o maravilhoso — no sentido do “unheimlich” freudiano — com Borges, evidentemente, no centro do cânone. Mas há, também, Ernesto Sabato, Júlio Córtazar, Manuel Puig e a maravilhosa Silvina Ocampo — a quem foi negado o Prémio Nacional de Literatura por as suas histórias serem “demasiado cruéis” — e o seu marido Adolfo Bioy Casares. A nova geração de autores argentinos, a que Enriquez pertence, não desdenha desta herança, como fica provado em As Coisas que Perdemos no Fogo, conjunto de doze contos que vai buscar o título à última das narrativas.

A história da Argentina do século XX é feita de tragédia e horror com convulsões políticas e sociais, esquadrões da morte, prisões, tortura, desaparecimentos. É um país de fantasmas. Mesmo na sofisticada e europeizada Buenos Aires, as zonas periféricas junto ao poluído rio Riachuelo abrigam os mais destituídos. No conto Sob a Água Negra, baseado num episódio real de violência policial, dois jovens que saem à noite de uma discoteca são brutalmente espancados e lançados ao rio pejado de detritos e contaminado pelas descargas das fábricas e dos matadouros. (De acordo com Enriquez, o Riachuelo é um símbolo da corrupção no seu país.) Em Os Anos Intoxicados, o relato acompanha um tempo específico, histórico, entre 1989 e 1994, como ele foi vivido pelas pessoas vulgares, com cortes de energia diários e insegurança, aqui ilustrada pelas experiências selvagens de um grupo de raparigas que fumam marijuana venenosa, bebem demais, não comem — “Queríamos ser leves e pálidas como mortas “, dizem — e acabam por desaparecer na noite.

O gosto de Enriquez vai para o bizarro, o inominável, até para o paranormal. As casas, como é próprio dos contos de terror, desempenham o papel de quase personagens — atraem, seduzem, desnorteiam, capturam, aniquilam — como acontece no conto A Casa de Adela, em que a protagonista observa horrorizada como o irmão e a própria Adela são literalmente enfeitiçados, para lá de qualquer possibilidade de salvação. Outro dos temas que Enriquez aborda é o da marginalização, daqueles que são “diferentes”: bandidos, sem abrigo, drogados, transexuais, mutilados física — como Adela, que não tem um braço — moral e psicologicamente. As suas narradoras são mulheres jovens que observam com atenção o que se passa nos lugares mais recônditos, para onde ninguém quer, ou pode, olhar. Por vezes são vítimas de alucinações, têm pesadelos ou estão sob a influência de drogas. Em Fim de Ano, por exemplo, a narradora conta como uma colega de turma, desinteressante e mal vestida, arranca à dentada as unhas da mão, golpeia-se na face e continua a automutilar-se até que acaba por desaparecer, não sem deixar, insidiosamente, uma “herança” das suas práticas. Enriquez enreda memórias de terrores antigos, como a imagem de bruxas a arder em fogueiras — é o que fazem as mulheres no conto que empresta o título ao livro — com temores contemporâneos ligados, por exemplo, à dark web como acontece em Verde Encarnado Alaranjado. Não há tecnologia — telemóveis, televisões, internet, etc. —, nem ciência moderna, nem mesmo o racionalismo mais exacerbado que vença a maldade intrínseca no universo destes seres maltratados e solitários.

Os dois últimos contos são os mais violentamente escatológicos, como se Enriquez quisesse incutir uma feroz repugnância nos leitores. Na realidade, à semelhança de um autor como Stephen King, ela explora temas tão importantes como a morte, o sexo, o medo, o abandono, a marginalidade e a violência, contando histórias muito sérias mas que são, simultaneamente, populares e cativantes. Conhecemos bem certas personagens como as suas jovens petulantes, os seus bandidos brutais, os seus traficantes engenhosos, os toxicodependentes que enxameiam certas ruas de Buenos Aires ao cair da noite, as crianças abandonadas e, também, a teia de cumplicidades criada nos bairros, a bondade desinteressada e surpreendente, a atmosfera mágica, a atracção pelo desconhecido que tanto pode deslumbrar os protagonistas como destruí-los,

Existe, ainda, uma leitura política e histórica subjacente a estes contos. É a própria Enriquez que o diz, ao chamar a atenção para o facto de o terror criado pela violência institucional — própria das ditaduras da América Latina, principalmente a que vigorou na Argentina, entre 1976 e 1983 — ser mais do que simples repressão, ser uma manifestação do Mal. Os elementos macabros fazem parte do quotidiano e a sua bizarria surge como natural nestas narrativas atravessadas por um humor quase diabólico. Sem perdão nem indulgência.

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