Globalização pop

O contexto político atual carateriza-se por um maior reconhecimento da heterogeneidade na distribuição dos ganhos da globalização. Se tal se deve aos famigerados “populismos”, então é preciso agradecer-lhes por isso.

Um artigo publicado no The Guardian no passado dia 14 narra a história da ascensão e queda do apoio à ideia de globalização. Depois do “Brexit” e de Trump, mas também dos desempenhos eleitorais de Bernie Sanders e Jeremy Corbyn, multiplicam-se as análises à recente ascensão política de um sentimento crítico perante a globalização nos países que mais a promoveram. A estes acontecimentos políticos, soma-se o trabalho académico de investigadores como Branko Milanovic, que têm chamado a atenção para a existência de “winners” e “losers” da globalização entre países e dentro de cada país.

Estes desenvolvimentos políticos e académicos obrigaram os tradicionais defensores da globalização a reconhecer que esta, ao contrário do que afirmavam, não tem sido a maré que eleva todos os barcos. Isto apesar de, com frequência, as perspetivas críticas ainda serem descartadas através da atribuição do carimbo de “populismo”, que tem sido conveniente para rotular um pouco de tudo, desde movimentos claramente xenófobos e ideologicamente disformes (Trump, Farage, etc.) até manifestos social-democratas (Sanders ou Corbyn).

A configuração da globalização contemporânea é fortemente marcada pelas práticas das instituições financeiras internacionais sediadas em Washington, nomeadamente o Fundo Monetário Internacional e o Banco Mundial, que, desde os anos 80, têm promovido a liberalização dos fluxos comerciais e financeiros pelos países que visitam. Estes processos encontravam o seu suporte teórico na autoridade “científica” da economia neoclássica — o mainstream da investigação em Economia —, apesar de serem contestados por outras escolas do pensamento económico. Aliás, mesmo dentro do mainstream, essas iniciativas nunca foram consensuais, sendo conhecidas as posições críticas de economistas versados na linguagem neoclássica como Dani Rodrik (muito citado no artigo do The Guardian) ou Joseph Stiglitz.

Curiosamente, enquanto as instituições financeiras internacionais exigiam políticas de liberalização dos fluxos internacionais, disseminava-se a ideia de que a globalização não seria a consequência de escolhas políticas, mas sim um fenómeno politicamente neutro, apenas impulsionado pelo avanço tecnológico, que derrubava barreiras e encurtava distâncias. Em relação a esta ideia, importa não esquecer que a economia mundial era bem mais “globalizada” no final do século XIX que durante grande parte do seguinte, apesar do contínuo — e, nesse período, significativo — progresso técnico.

A decisão política quase generalizada de liberalização dos fluxos internacionais tem levado a uma crescente interdependência comercial e, sobretudo, financeira entre os vários países do mundo. Neste contexto, a fragmentação e dispersão da produção para lá das fronteiras nacionais, através da formação de redes de produção regionais e globais, estabeleceram-se como dinâmicas fundamentais da globalização. Estas dinâmicas foram também impulsionadas — e, por sua vez, exacerbaram — a financeirização do capitalismo nos países desenvolvidos, porquanto o foco na maximização do valor gerado para os acionistas incentivou a transferências das atividades produtivas para uma rede de fornecedores sobre os quais a empresa-líder multinacional, apesar do seu poder significativo, não tem responsabilidade direta.

A globalização nunca foi um processo pacífico. No entanto, o que mais se realça nesta nova vaga crítica é a sua ascensão política acontecer nos países cujas elites, políticas e empresariais, foram responsáveis por delinear e promover a globalização contemporânea. Anteriormente, a oposição encontrava-se sobretudo nos países periféricos, como se verificou em vários momentos, desde a criação da UNCTAD (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento) em 1964 até à rejeição em vários países da América Latina das condições políticas das instituições financeiras internacionais na viragem do século, e ao colapso das negociações da ronda de Doha da Organização Mundial do Comércio, em que a oposição determinada do Brasil, da Índia e da China às propostas dos Estados Unidos e da União Europeia foi fundamental.

Agora, parece ser destes países que se espera a defesa da globalização contemporânea, quando até recentemente eram vistos como ameaças às estruturas de poder tradicionais no plano internacional. E, de certa forma, estes até se têm revelado dispostos a assumir esse papel. Nomeadamente, a China que, pelo menos ao nível do discurso, tem, desde a eleição de Trump, reclamado para si o papel de líder do comércio livre, recomendando aos outros o que nunca praticou. Também no Brasil, os recentes acontecimentos políticos têm levado à afirmação de uma postura mais favorável à globalização contemporânea do que o discurso desenvolvimentista das presidências Lula e Dilma (não obstante todas as suas contradições resultantes da influência dos interesses do agronegócio).

É ainda cedo para perceber o rumo destas dinâmicas ainda pouco robustas e se de facto haverá uma inversão dos papéis tradicionais nestes debates. Não há, portanto, respostas para as grandes especulações sobre o futuro da globalização. No entanto, é notório que o contexto atual se carateriza por um maior reconhecimento da heterogeneidade na distribuição dos ganhos da globalização, não só entre países, mas também dentro de cada país, entre diferentes sectores de atividade e segmentos da população. Se tal se deve aos famigerados “populismos”, então é preciso agradecer-lhes por isso.

O autor escreve segundo as normas do novo Acordo Ortográfico

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