O Mimo perdeu o legado do samba para ter o legado do mundo

Foram 60 mil a procurar a música de todo o mundo em Amarante.

Fotogaleria
Rodrigo Amarante Lino Silva
Fotogaleria
Rodrigo Amarante Lino Silva
Fotogaleria
Visão do palco do Mimo Lino Silva

Houve uma vez em que Rodrigo Amarante cantou Tardei e o rio que se ouvia no fundo da voz acompanhada ao violão era o Tâmega. E esse momento foi para o músico o regresso a uma casa onde nunca tinha estado. “Esse rio tem gotas do meu sangue”, diz o poeta, em jeito de músico, ao lembrar que em dado momento, alguém da sua família saiu dali para o Brasil “e virou fulano de Amarante”. Alguém que ainda não tem nome, nem história — a não ser pelas falas do avô que lhe contava da cidade. Afinal, o apelido de Rodrigo não é uma feliz coincidência, mas uma melancólica — “em algum jeito ridícula” — descoberta das origens: “Eu estou trazendo o nome de volta”.

O músico de Los Hermanos está numa busca — ainda “preguiçosa” — por um passado que lhe explique a ligação à cidade banhada pelo rio, onde nadou “até cansar”, e onde o sol lhe queimou a pele por baixo da barba branca. Há-de entregar ao padre a sua árvore genealógica com os nomes de familiares, não vá a sorte tê-los feito homens e mulheres de fé. Sente que tem “herança em Amarante” e, em boa hora, quis dividi-la com esse público.

Sobe ao palco, no último dia do festival Mimo, e o público há muito que é seu. E quantas vezes Rodrigo Amarante subir ao palco, quantas vezes não vai compreender que as “pessoas vieram mesmo”.

Num palco como este está desprotegido — sozinho, de violão ao peito, com a voz a ameaçar trair-lhe o esforço “por se portar bem” dos últimos dias. Mas a voz não lhe falha, só o coloca, a um passo da vulnerabilidade, mais próximo do público. Sentar-se ao piano para Cavalo é um exercício de controlo das emoções que, por esta altura, são tantas que há suspiros a encher os momentos de silêncio que antecedem os primeiros acordes. 

É a despedida portuguesa de Cavalo, o primeiro álbum a solo. Há uma ovação a cada sucesso, que Rodrigo Amarante canta de quantas línguas quantas a sua poesia tem: Mon Nom, Irene, Tuyo e I’m Ready. Passou por Condicional de Los Hermanos e Pode ser de Orquestra Imperial. Tardei foi “um jeito muito doce de pressionar os políticos” contra a construção de uma barragem no Tâmega.

E se o primeiro álbum era inevitavelmente um auto-retrato, o segundo, que chega no próximo ano, é o cenário que se desenha por trás do artista: “Para onde que eu vou? Para onde que eu volto? O que há diante de mim?”.

De tantas voltas que deram

De tantas voltas que Rodrigo Amarante deu, veio desaguar num projecto a solo. Impossível olhar para Manel Cruz, ex- Ornatos Violeta, e não ver a coincidência para lá da amizade. As suas músicas são também poemas inacabados até o público os cantar e lhes acrescentar a sua interpretação. A tese é de Rodrigo Amarante e é como se catalogasse a caixa de remendos que é o projecto Foge Foge Bandido. De tantas voltas que deu, o ex-Ornatos Violeta dá também a cara em nome próprio, acompanhado por Nico Tricot, António Serginho e Eduardo Silva.

Percorre músicas novas e velhas – da recém-chegada Ainda não acabei, do Fora de combate a algo tão icónico como Capitão Romance. É uma hora e meia de concerto em que no músico há a performance e a música “não muito concreta” de Foge Foge Bandido, que surgiu em gravações em casa, no sofá. Há “o artista surrealista” e a música “sem regra” de Supernada. E há as canções antigas – as mais antigas – na retrospectiva que a idade adulta obriga, mas “com a cabeça sempre na arte”. Tudo isto contou no Fórum Ideias, uma das pontes que o Mimo faz entre artistas e público.

Em Manel Cruz, há as mil expressões de um músico solto de si próprio – entre os mais recentes trabalhos Estação de Serviço (2015) e Extensão de Serviço (2017) e as músicas símbolo de uma geração.

Legado do Mundo

O entusiasmo no Mimo foi uma escalada, com os concertos a chegarem aos três cantos do Mimo na cidade: do parque ribeirinho, à Igreja de São Gonçalo e Museu Amadeu Souza-Cardoso. Aí Jards Macalé, guitarrista de Caetano Veloso em Transa (1972), abriu a noite do primeiro dia e deitou raízes à terra. Foi criado no morro entre as escolas de samba, o piano nas saias da mãe e o acordeão do pai a tocar todas as noites.

O melhor do Mimo são os telemóveis guardados e os pés que não param no chão. O festival perdeu o legado do samba, para ter o legado do mundo. Era um objectivo, admite Lú Araújo, sobre o festival que fundou no Brasil, há 13 anos, e trouxe no ano passado para Portugal: “O Mimo é para ligar a novas culturas e para trazer músicos consolidados que não estão tão acessíveis assim”.

As palavras de Lú são o piscar de olho aos Tinariwen, que actuaram na sexta-feira. Há que parar e traçar uma linha: o choque cultural “é uma graça” e, no Mimo, só há público que a enriqueça. É ver a maioria da plateia, para quem a banda de tichumaren, rock e blues do Mali era desconhecida, a levantar os pés do chão. Os Tinariwen são o refúgio do blues do nordeste malinense, cicatrizados da guerra, dos campos de refugiados, da fuga. E aquele público foi um ponto seguro. É a música tão universal que a rebelião política dos tuaregues encaixou em Amarante, à beira-rio.

Os Nação Zumbi, um dos nomes grandes do rock brasileiro, tinham encerrado o primeiro dia com o início de uma “grande festa que quando começa não quer mais acabar”. Continuou-a Hamilton de Holanda e o Baile do Almeidinha, presentes no ano passado. São prata da casa a julgar pelos fãs, nas primeiras filas, de corpo curvado a dançar, de alegria a rasgar a cara. É o samba, o frevo e o baião a entrar corpo dentro.

Convidaram Mayra Andrade e uma cumplicidade invejável subiu a palco. Em Lamento Sertanejo, a voz da cabo-verdiana enche a sala de concertos ao ar livre e Sodade rende o Mimo ao silêncio em homenagem a Cesária Évora. Muito pouco nesta noite veio de pautas escritas. É o improviso a ditar.

Jazz à beira rio

Na segunda edição, o público do Mimo triplicou: passaram por Amarante 60 mil pessoas. Se o festival cresceu, em nomes e em público, Herbie Hancock carrega o fardo maior dessa responsabilidade. É dele e da sua banda o protagonismo da segunda noite. Afinal são 50 anos de carreira e 14 grammys em cima de um dos maiores nomes do jazz mundial. Partilhou as consecutivas ovações com o baterista Vinnie Colaiuta.

A provar a qualidade musical esteve também Richard Bona, baixista jazz dos Camarões, que anda na estrada a fazer uma ecléctica mistura com os Madekan Cubano. Quem não o conhecia, pouco podia adivinhar do furacão que veio dali, com uma banda soberba a confirmar a escalada musical do festival. As origens humildes de Bona aproximam-no de Jards Macalé: ambos fabricaram os próprios instrumentos com que começaram a tocar. Alcançaram fama mundial e o público do Mimo vergou-se a eles.

Na altura do Brasil se despedir do Mimo, fê-lo no seu sentido não tradicional, com Céu a misturar à sua raiz popular brasileira, as influências jazz e afro beat do mundo fora de São Paulo. Passou pelos seus principais singles, varrendo com mais afinco Tropix (2016), o seu último álbum de estúdio. Para quem a via “engenheira de ilusões”(um dos versos das suas letras), a canção Minhas bics fez as delícias. E com a voz que brinda o parque ribeirinho com Grains de Beauté, "parece que um anjo veio de Céu", disse alguém do público durante o espectáculo.

Descanso para os cépticos que viram festivais trocar a pequena casa natal por cidades maiores: ficar em Amarante é uma garantia do Mimo. Está na lista da directora trazer músicos do Canadá, da Índia, da Coreia do Sul. E o regresso está marcado para o ano, de 20 a 22 de Julho.

Sugerir correcção
Comentar