O fascínio do fracasso

Putas Assassinas: catálogo de personagens em que transparece, tão ao jeito de Bolaño, a melancolia da derrota, não raras vezes associada a uma violência que parece trazida pelo destino.

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Para Bolaño o texto literário é uma fantasmagoria condenada aos pesadelos e às visões

Para o chileno Roberto Bolaño (1953-2003), o texto literário é uma fantasmagoria condenada aos pesadelos e às visões; nele, o passado, que é trazido pelos ventos negros da miséria para o campo ritual do horror, é a memória em permanente construção (ou melhor, é antes uma espécie de construção do esquecimento), é o imaginário colectivo esvaziado e em contínua reformulação num espaço estilhaçado palas memórias individuais, sem mitologias nem heróis, em que o épico se transformou em elegia. E isso é bem evidente também nesta colectânea de contos, Putas Assassinas, um dos seus últimos livros publicados em vida. Para Bolaño a literatura era o duro ofício de dar voz aos fantasmas que habitam a noite escura da nossa alma, esses lugares onde já mal se ouvem canções e onde cabem a loucura e o horror. Essa espécie de atracção pelo vazio do abismo, pela vertigem e pela queda, está presente em toda a sua obra. O que sempre o importou não foi o sangue nem as balas, foram as vidas banais das personagens, com as suas grandes derrotas, carregando às costas os magros despojos dos seus naufrágios, foram as vidas vítimas das desgraças, vidas vagabundas e marginais, foram os orgulhosos anti-heróis e as suas missões impossíveis, e foi sobretudo essa incessante busca pela sobrevivência a que todas as suas personagens estão irremediavelmente condenadas. Como se de um abismo temporal se avistasse uma paisagem irrecuperavelmente perdida.

Os contos de Putas Assassinas são um outro catálogo de personagens em que transparece, mais uma vez, e tão ao jeito de Bolaño, a melancolia da derrota, ou talvez seja antes o fascínio pelo fracasso, que não raras vezes surge associado a uma violência (de onde a ternura não está ausente) que parece trazida pelo destino. É a essa violência que o narrador do primeiro conto, O Olho Silva, se refere ao dizer: “da verdadeira violência não se pode fugir, pelo menos nós não, os nascidos na América Latina na década de 50, os que rondávamos os vinte anos quando morreu Salvador Allende”.

É o tenso equilíbrio entre energia e melancolia o que talvez seja mais característico no tom narrativo destas histórias que, de alguma forma, pairaram algures perdidas no tempo, num tempo chileno de Allende, num tempo mexicano de exilados, e também num tempo catalão. Esta recorrente e aparente ‘simultaneidade’ dos tempos como labirinto de terror (mas não só, também as imagens de espelhos, os jogos de duplos, recorrentes na obra de Bolaño) parece querer remeter o leitor para Jorge Luis Borges, mais precisamente para o seu conto O Aleph (Quetzal, 2013): o “aleph” é o objecto fantástico que concentra “sem se confundirem, todos os lugares do globo, vistos de todos os ângulos”, escreveu Borges. A maneira digressiva de apresentar o tempo acaba por criar incertezas e muitas ambiguidades em relação ao real, cujas fronteiras são assim expandidas ao máximo, criando, no limite, um “outro real” onde também há lugar para o fantástico, afastando-se da verosimilhança e abrindo caminho à ilusão.

Alguns destes contos (sobretudo dois deles) soam a ajustes de contas. O primeiro com os chilenos exilados depois de Allende: “exilados, gente de esquerda que pensava, pelo menos da cintura para baixo, de forma extremamente igual à da direita que naquele tempo se assenhoreava do Chile”. E um outro, Caderninho de Baile, que é uma diatribe ficcionada contra Neruda, em que Bolaño, um pouco em jeito de pós-modernista que apresenta uma biografia intelectual, escreve um conto enumerando 69 pontos para não falar com o poeta chileno: “Confesso: não posso ler o livro de memórias de Neruda sem me sentir mal, terrível. Que acumulação de contradições! Que quantidade de esforços para ocultar e embelezar aquilo que tem o rosto desfigurado! Que falta de generosidade e pouco sentido de humor!” As restantes histórias contam de uma viagem a um Acapulco desolado que se transforma em pesadelo, de uma narrativa de futebol dividida em três partes, de viagens ao mundo dos traficantes de droga e de realizadores de filmes pornográficos, e outros são contos de inspiração autobiográfica (tomados pela solidão e melancolia) com finais abertos.

Curiosamente, ou não, as vozes narrativas deste Putas Assassinas, parecem-se quase todas com a voz da narradora do romance-solilóquio Amuleto (Quetzal, 2013), Auxilio Lacouture, e também elas poderiam afirmar com convicção: “Esta vai ser uma história de terror. Vai ser uma história policial, uma narrativa de série negra e de terror. Mas não parecerá. Não parecerá porque sou eu que a conto.”

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