Irmãos e taxistas nas canções dos Songhoy Blues

Ao segundo álbum, Résistance, o rock dos malianos Songhoy Blues ganha uma expressão mais vasta e traz consigo um Iggy Pop que ajuda a conseguir a atenção para a vida no Sahara.

Foto
Josh Cheuse

Em 1970, quando Iggy e os Stooges lançaram Fun House, o Mali não estava propriamente sintonizado com o advento proto-punk ou sequer com o rock’n’roll. Estava em plena transformação com a ascensão ao poder do general Moussa Traoré (depois do golpe de Estado de 1968), a seis anos de Ali Farka Touré registar pela primeira vez em disco a sua hipnotizante guitarra arraçada de blues, muito longe de sequer se imaginar a acertar o passo com as tendências da música de guitarras que (mais ou menos penosamente) alastravam pelo mundo ocidental. Esse seria o ano, aliás, da formação da popular Rail Band, onde se estreou Salif Keita, fazedora de uma contagiante sonoridade de óbvia dívida afro-latina, vaporizada pelos distantes sons cubanos e por uma derivação do jazz muito específica da África subsariana.

Passados mais de 45 anos, o rock’n’roll perdeu alguma da sua frescura e, num movimento contrário, não se tem privado de viajar física e musicalmente para terras africanas à procura de um suplemento de inspiração. Mas nem por isso Iggy Pop se tornou um nome mais familiar para as gerações que nasceram por ali já depois de os Stooges implodirem e do seu vocalista registar os primeiros álbuns a solo. Garba Touré, guitarrista dos Songhoy Blues, sempre falou de ter crescido com os ouvidos cheios de Beatles, Jimi Hendrix ou John Lee Hooker (tal como Ali Farka), mas a peneira que deixa passar os nomes mais mediáticos para terras do Mali nunca foi tão porosa que a música de um herói do rock marginal pudesse fazer uma viagem pouco acidentada.

Os Songhoy Blues formaram-se, ironicamente, devido ao êxodo provocado pela violenta invasão do norte do país pelo grupo radical islâmico Ansar Dine, cuja ameaça de punir com severidade quem quer que tivesse instrumentos levou estes quatro músicos a migrar para Bamako e aí se juntarem unidos pela vontade de se expressarem atrás do rock. No entanto, quando Damon Albarn se apaixonou pela vitalidade da sua música e os colocou no caminho do guitarrista Nick Zinner (produtor do seu primeiro álbum, Music in Exile), Garba e companhia nunca tinham ouvido nem dos Blur nem dos Yeah Yeah Yeahs. Da mesma forma que, agora, chegada a altura de avançarem para estúdio a fim de gravar Résistance, a música de Iggy Pop era para eles um território totalmente desconhecido quando o produtor lhes sugeriu o homem dos Stooges para participar no tema Sahara. “Conhecíamos o Iggy Pop por ser o Iggy Pop. Está num patamar em que mesmo que não escutemos a sua música conhecemos-lhe o nome.”

 “Gravámos essa música sobre a vida no Sahara”, conta ao Ípsilon o vocalista Aliou Touré. “Depois alguém achou que seria bom termos um nome lendário para passar aquela mensagem – que é muito importante e intensa [a canção diz, entre outras coisas, que ali “não há condomínio, não há pizza, é uma cultura genuína, sem Kentucky Fried Chicken”]. Precisávamos da lenda para propulsionar a mensagem. Então escreveram ao Iggy Pop e ele mostrou-se muito disponível. Até ficámos muito surpreendidos que alguém como ele aceitasse, sem quaisquer reservas, trabalhar com um jovem grupo africano.”

Desta vez, em vez de optarem por um estúdio em Bamako, perto de casa, os Songhoy Blues preferiram trabalhar o disco em Londres, em parte porque é lá que se encontra baseado o produtor e no Mali “a situação não está ainda assim tão estável” para que pensassem seriamente em convidar Neil Comber a deslocar-se ao país. Londres, de certa forma, era também o espelho de todo o processo de construção de um álbum que foi sendo composto à medida que o quarteto se ia deparando com “a possibilidade de viajar pelo mundo e de conhecer muitas pessoas e culturas diferentes”. “Isso fez com que as ideias de arranjos e as experiências sonoras que queríamos incluir no álbum pudessem reflectir uma evolução no grupo.”

E porque Résistance não se podia limitar a repetir a fórmula (certeira) de Music in Exile, há todo “um cocktail de frutas com todo o tipo de grooves”, diz Aliou, em que rock, blues, funk, hip-hop e reggae se fazem sentir com um peso variável. No refrão de Voter, longe do património a que os Songhoy Blues recorrem, ouvidos ocidentais facilmente detectam ecos de Queens of the Stone Age. Sem o saberem, talvez não andem assim tão longe de Iggy Pop.

A necessidade de testemunhos

Há dez anos, Amadou & Mariam galgavam as fronteiras da música africana com um tema (Dimanche à Bamako) em que descreviam os domingos casamenteiros da capital maliana. Bamako, que os Songhoy Blues publicam em Résistance, celebra agora as festivas noites de sábado na cidade, uma resposta de pura e simples diversão ao habitual noticiário demasiado negativo em que sempre descobrem o Mali quando estão fora de casa. É um dos temas revolucionários na nova sonoridade do grupo, encostado a uma sonoridade soul que antes não lhes conhecíamos – e que voltamos a encontrar em Yersi yadda –, bem acompanhado pela leveza folk (com direito a violino) de Hometown ou pela celebração com um coro infantil plasmada em One colour.

One colour “é uma canção sobre o racismo”, diz Aliou. “Aquilo que nos inspirou a convidar as crianças é que elas brincam juntas, não reconhecem diferenças entre os seres humanos, sejam estas de cor ou de religião, entre elite e povo. É importante que sejam as crianças a passar essa mensagem, para serem elas a educar os seus pais.” Tal como acontece em muitos outros temas do grupo, a energia fulgurante das suas canções é compatível com relatos do quotidiano do Mali, baseados “sobretudo na actualidade e aquilo que a anima, assuntos muito relacionados com problemas de desenvolvimento e económicos, de África mas também do mundo em geral”.

Tudo é escrito a partir do lugar de resistência que dá nome ao álbum. Resistência às invasões e às leis arbitrárias que violentam o povo, resistência pela manutenção de uma cultura em que a música é um elemento fundamental no dia-a-dia, resistência pelo direito a uma existência digna, não se vergando diante das instâncias de poder e dos seus humores. Daí que Aliou admita que para escrever um tema é preciso ouvir o as pessoas, “tal como para escrever um artigo na imprensa é preciso ouvir testemunhos”. “Temos de traduzir o que sentem os amigos, os irmãos, os taxistas, o povo, e de interpretar aquilo que dizem.”

Como se, a cada segundo, por detrás da sua voz e de cada letra dos Songhoy Blues houvesse sempre uma pequena multidão.

Sugerir correcção
Comentar