A Galp, os ciganos, a polícia e o cirurgião

Estamos, claramente, a entrar na silly season.

Creio que há um sector no Partido Socialista que, traumatizado pelas graves derrapagens na investigação do caso Casa Pia, se fixou numa atitude de sistemática suspeição e censura em relação às nossas magistraturas, procurando regularmente deslegitimar na opinião pública a actuação da Justiça, atitude que não só me parece injustificada como é claramente prejudicial para todos nós enquanto comunidade.

Só esse preconceito pode justificar as declarações do presidente da Assembleia da República, em entrevista à TSF, sobre o caso das ofertas de viagens e bilhetes da Galp a governantes, que afirmou, a título de posição pessoal, ser um absurdo falar de crime, acrescentando: "Por que é que passado um ano há agora esta situação de serem constituídos arguidos? É um mistério da justiça portuguesa."

Pela qualidade da pessoa e pelo lugar que ocupa, estas declarações são particularmente lamentáveis pelo que representam de desrespeito pela separação dos poderes numa sociedade democrática e de persistência dessa posição de combate ao aparelho da justiça. A que título o presidente da assembleia legislativa critica a actuação do poder judicial desta forma? A sua opinião pessoal sobre ser, ou não, um crime resulta de um parecer dos seus serviços jurídicos ou, como é uma posição pessoal, satisfez-se com um palpite para lançar uma boca? E — não se pode deixar de perguntar — se o Ministério Público nada fizesse, o que iríamos ouvir no caso de os beneficiados serem de um Governo do PSD/CDS?

Afirmações infelizes, como infelizes foram as afirmações de um candidato partidário à Câmara de Loures em que apontava genericamente às pessoas de etnia cigana práticas sistemáticas contrárias ao Estado de Direito. As declarações em causa, possivelmente baseadas em uns quaisquer factos concretos, mas formuladas em termos genéricos como se as práticas ilegais apontadas fossem o exclusivo de uma etnia, visam sobretudo criar um “inimigo” ou um “bode expiatório” para fins eleitorais. A ver vamos se são compensadoras eleitoralmente, mas para além da censura ética e política, não parece que essas declarações mereçam qualquer censura criminal. O Bloco de Esquerda apresentou uma queixa-crime contra o candidato mas não me parece que esse processo possa e deva ter qualquer viabilidade. Na arena pública, contra afirmações idiotas e imbecis só há que produzir mais afirmações, de preferência, inteligentes e esclarecidas e não tentar calar a estupidez com medidas repressivas.

Como é evidente, quando das palavras se passa aos actos, já a situação é diferente, como sucedeu no recente caso de um restaurante em Odivelas que proíbe a entrada de pessoas de etnia cigana, o que originou uma queixa da Associação SOS Racismo junto da Comissão para a Igualdade e Contra a Discriminação Racial, ou nos diversos casos de discriminação racial a nível da actuação das nossas forças policiais denunciados por esta associação.

A recente acusação criminal contra numerosos agentes da PSP da esquadra da Cova da Moura — sem prejuízo da sua presunção de inocência — veio reforçar a notável actividade cívica daquela associação na denúncia e combate ao racismo enraizado nas práticas das nossas polícias. Neste caso da Cova da Moura, o que parece de lamentar é não terem surgido mais declarações públicas — nomeadamente de responsáveis políticos e governamentais — repudiando quaisquer práticas racistas por parte das forças policiais. 

Por último, neste balanço das mais recentes declarações politicamente incorrectas, não se podem deixar de referir as declarações homofóbicas de um clássico cirurgião nacional que se tem notabilizado pela defesa de posições extremamente conservadoras e para quem a homossexualidade “é uma anomalia, é um desvio da personalidade. Como os sadomasoquistas ou as pessoas que se mutilam”. Não é assim, provavelmente, que a maior parte de nós pensa e não é assim que pensa o mundo científico, mas de tais afirmações só se pode concluir que o médico em causa vive noutros tempos, não se justificando, naturalmente, qualquer censura em termos disciplinares por parte da Ordem dos Médicos.

Estamos, claramente, a entrar na silly season...

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