Dois cidadãos exemplares

Este diálogo não foi gravado mas é real. E mostra como, tantas vezes, a nossa cidadania é bem pior do que os nossos políticos.

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Depois de anos de apelos e protestos, uma praça do centro histórico de Lisboa deixou de ser um parque de estacionamento improvisado e foi devolvida às pessoas. Mas a força do hábito é grande e esta semana dois irmãos deixaram ali o seu carro durante toda a tarde.

— Boa noite, sabe que agora já não pode estacionar dentro desta praça? Passou a ser proibido.
— Ai sim?! Não, não sabia...
— Repare, o sinal mudou: em vez de ser proibido estacionar excepto para cargas e descargas, agora é proibido circular. Só pode entrar quem vai para as garagens.
— Isso significa que fico desempregado!
— Desculpe…?
— Como é que eu venho trabalhar? Eu moro em Mafra! Como é que venho para Lisboa?
— De comboio, de autocarro, de metro, de eléctrico... Há dezenas de hipóteses para chegar ao centro histórico.
— Mas eu moro em Mafra…!
— E há quem more em Sintra e em Cascais e em Torres Vedras. Não é por isso que estacionam o carro no meio de uma praça histórica, no adro de uma igreja do século XVIII, à porta de um museu e a metros de um monumento nacional do século XII.
— Mas nós temos um atelier, transportamos telas e materiais com frequência.
— Essas são as suas circunstâncias. Cada cidadão tem as suas. A cidade não pode ser organizada à imagem das circunstâncias individuais de cada um de nós. Vai ter de encontrar uma solução. Esta praça deixou de ser um parque de estacionamento e foi devolvida às pessoas.
— Devolvida às pessoas?! E nós, que trabalhamos aqui, quem nos defende?
— Terá de fazer o mesmo que fazem os que trabalham na cidade. Se têm onde estacionar ao pé do trabalho, vão de carro. Se não têm, não vão. Sendo que, para o centro histórico, só não há carreira de helicópteros públicos.
— Mas nós somos artistas.
— Este bairro está cheio de artistas e nenhum estaciona o carro em cima desta praça histórica. E não estão sozinhos. Há anos que muitos moradores fazem protestos sobre o estacionamento abusivo nesta praça. Agora, a Junta de Freguesia e a Câmara Municipal mudaram finalmente a sinalização. Não notou que é o único carro estacionado?
— De facto… pensei que era por ser Julho.
— Não. É porque o sinal mudou.
— Lindo presente de férias que me dá. Não sei o que vamos fazer…
— Porque não vêm de comboio?
— Teria de deixar o carro no Campo Grande…
— Parece uma boa ideia.
— Mas não posso pagar oito euros de Uber por dia.
— Pode vir de metro do Campo Grande até aqui.
— Mas temos alunos que vêm da linha de Cascais.
— Podem vir de comboio e depois é só subir a rua.
— Isso é para quem vem de Cascais. E quem mora no Guincho?! Temos duas alunas que vêm do Guincho… sabe quanto custa o parque lá de cima?
— Essas duas alunas teriam de encontrar uma solução adequada às suas circunstâncias: moram no Guincho e têm uma aula a meio da tarde no centro histórico da capital.
— Sabe que a Emel não nos dá sequer um lugar?! E que nos perguntou se dormíamos no atelier?! Só se dormíssemos no atelier é que teríamos direito a um dístico de residentes!
— Parece razoável. Se os não-residentes tivessem um dístico de residentes, o sistema não funcionaria.
— Proibir não resolve nada. Primeiro tem de haver soluções. O centro histórico é lindíssimo, mas está entregue aos turistas!
— Nesse ponto concordamos: a Câmara tem de encontrar soluções para o descontrolo do turismo. Temos um grupo de 90 vizinhos que faz pressão junta da câmara e da junta de freguesia. Não querem juntar-se a nós? Escrevemos cartas e emails, por vezes a um ritmo diário, a pedir e a propor soluções para os problemas mais graves do bairro. Há os “muros com rodas” (os autocarros turísticos) que mal cabem nestas ruas, há a desregulação dos tuk-tuk (que em vez de quatro, como a lei permite, são aos 20 e 30 parados ao mesmo tempo) e há o novo problema dos turistas que dormem nos Alojamentos Locais e trazem carros que alugaram no aeroporto: apartamentos onde antes vivia uma família foram transformados em residenciais com sete “mini-apartamentos”, o que significa sete carros extra por noite. Basta multiplicar pelo total de Alojamentos Locais no bairro.
— Isto tornou-se um inferno: um dia destes tive de deixar o carro na Graça!
— Sim, muitas vezes temos de esperar que os restaurantes fechem e os turistas se vão embora para sairmos de casa e podermos estacionar bem o carro. Mas não estacionamos em cima desta praça. Durante anos, as circunstâncias individuais de centenas de pessoas também foram a justificação para que o Terreiro do Paço fosse um parque de estacionamento.
— Sim, o meu pai estacionou lá durante anos.
— E não acha que ganhámos todos com a devolução do Terreiro do Paço aos cidadãos?

A conversa não foi gravada, mas é real e segue fielmente a argumentação. É sobre Lisboa, mas aplica-se a todas as cidades de Portugal. Somos um país onde a defesa do bem comum é vista como uma “mania” e uma excentricidade, onde os funcionários públicos desconfiam de quem protesta, onde domina a ideia de que o cidadão que reivindica o respeito pelo espaço público é um delator e esconde algum interesse privado, onde o cónego da Sé de Lisboa, monumento nacional desde 1910, e os seus funcionários estacionam em cima do passeio que abraça a Catedral, onde o carro oficial do bispo galga a pedra do século XII e sobe até à porta de entrada (e ali fica durante a missa), onde somos da elite cultural até ao instante em que queremos estacionar dentro do escritório, onde quem pede bom senso e controlo é “contra o turismo” e não compreende que o país está a tentar sair da crise, onde os edifícios públicos da Baixa Pombalina têm janelas novas de alumínio, onde a polícia deixa o carro em segunda fila à porta da esquadra da Rua de São Julião, e onde os restaurantes encostam as garrafas e as caixas de cartão por desmontar ao pé das árvores sempre que os contentores da reciclagem estão cheios.

Esta conversa é real e mostra como, tantas vezes, a nossa cidadania é bem pior do que os nossos políticos.

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