Sobre o tal grupo que vive à conta do Estado

Ora até pode ser politicamente incorrecto, mas isso não torna o que diz em verdade nem torna o uso da sua liberdade, ao concorrer a um cargo público, mais legítimo quando a usa para difundir calúnias contra um grupo específico de pessoas.

Um candidato do PSD e do CDS a uma autarquia, de seu nome André Ventura, resolveu dizer que há um grupo que “em termos de composição de rendimento vive exclusivamente de subsídios do Estado” e que se sente com uma “enorme impunidade”, não tendo interiorizado “o Estado de Direito”. Veio entretanto procurar corrigir-se e dizer, no fundo, que não acredita em bruxas, mas que elas existem.

Em abstracto, passe algum exagero, até tendo a concordar com estas declarações. Cruzo-me, especialmente ao almoço em alguns restaurantes de Lisboa ou até em alguns convívios supostamente irrepreensíveis, com pessoas que quase posso jurar que vivem ou viveram em boa parte de exaurir selectivamente o Estado ou, de formas mais ou menos mediatas, até os contribuintes, portugueses e estrangeiros, e cujo sentimento de impunidade é notório – e porque não o seria? Sobre o seu interior e o conceito de Estado de Direito prefiro não me pronunciar.

O problema do senhor André Ventura é ele achar que este grupo de pessoas se reconduz aos ciganos e dizê-lo, com pretensa seriedade, num jornal. Ora isso não é só trágico do seu ponto de vista pessoal, porque anuncia bem a sua ignorância e a sua mundividência, mas também é dramático do ponto de vista colectivo, já que se pretende candidatar a uma câmara municipal e faz assentar pelos vistos o seu discurso para um cargo público nestas tiradas pífias e enganosas.

Pode haver eleitores em Loures que sonham com uma Loures livre de ciganos, de pretos, de comunistas, de homossexuais, de betinhos, de anarquistas, de sindicalistas, de banqueiros, de góticos, de políticos, de turistas, de bimbos, de elefantes, de criancinhas nos aviões a guinchar, de centros comerciais, de madeixas louras, de comichão? Pode, claro. E haverá seguramente. Agora podem votar no PSD, que pelos vistos acoita estas personagens purificadoras.

O problema adicional desta circunstância é o de que este emissor provavelmente se sente genuinamente a usar de uma suposta liberdade para “dizer as verdades”, doa a quem doer, mesmo sendo “politicamente incorrecto”. Ora até pode ser politicamente incorrecto, mas isso não torna o que diz em verdade nem torna o uso da sua liberdade, ao concorrer a um cargo público, mais legítimo quando a usa para difundir calúnias contra um grupo específico de pessoas.

Espero que os ciganos, como todos os outros, cumpram regras, não por serem ciganos, mas por estas lhes serem aplicáveis. Nisso não são diferentes. Mas não é isso que se está a dizer.

Loures terá, como Lisboa e outros concelhos urbanos de grande dimensão, problemas específicos que decorrem em boa parte da falta de instrução e de civilidade da sua população, da sua pobreza material, do seu sentimento de desapego, de desenraizamento e de injustiça, da sua falta de esperança e de futuro – e que decorrem de escolhas suas, mas também de escolhas que outros fizeram por eles ou pura e simplesmente da falta de possibilidade de escolha. Nada disso pode justificar que se escolha aleatoriamente em 2017 uma comunidade, estigmatizada em Portugal há séculos pela sua diferença, e se excite a vulgaridade na praça pública.

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