Será Dalí o pai de uma vidente chamada Pilar?

Exumar o corpo do artista catalão, algo que deverá acontecer esta quinta-feira, é um acontecimento "surrealista", diz Ian Gibson, biógrafo do pintor. Testes de ADN num caso de averiguação de paternidade voltam a pôr o foco no mistério que rodeia a sexualidade de Dalí, um extravagante voyeur.

O museu Dalí em Figueres, onde está sepultado
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O museu Dalí em Figueres, onde está sepultado Reuters/ALBERT GEA
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A alegada filha do pintor, Pilar Abel Martínez, durante uma entrevista à Reuters Reuters/JUAN MEDINA
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O túmulo de Dalí Reuters/ALBERT GEA
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Salvador Dalí em 1972 Allan Warren

Há dez anos que Pilar Abel Martínez diz a quem a quer ouvir que é filha de Salvador Dalí, o excêntrico artista catalão que é sinónimo de surrealismo, mas só nos dois últimos procurou na Justiça ser reconhecida como tal. No final de Junho, um tribunal de Madrid autorizou a recolha de amostras de ADN do pintor, embalsamado e sepultado sob uma lage que pesa uma tonelada e meia no museu que criou em Figueres, a vila onde nasceu em Maio de 1904, acedendo a um pedido desta mulher de 61 anos com quatro filhas, que acredita poder adivinhar o futuro e que, como cartomante, chegou a ter um programa na televisão de Girona durante oito anos.  

A exumação do corpo do autor de A Persistência da Memória, que morreu em 1989 sem deixar descendência directa, está marcada para as 20h desta quinta-feira para não afectar o funcionamento do Teatro-Museo Dalí, noticia o diário espanhol ABC. Os protestos da Fundação Dalí, que se opunha a estes testes, não deram em nada porque, explica a imprensa espanhola, a lei favorece quem procura identificar os progenitores.

A decisão judicial que permite a recolha de amostras do cadáver de Dalí – considerada uma “medida excepcional” – foi justificada pelo facto de não existirem outros vestígios biológicos do artista que servissem para uma comparação fiável do seu ADN com o de Pilar Abel Martínez que, segundo os documentos entregues à juíza encarregada do caso, María del Mar Crespo, nasceu em 1956, fruto de “uma relação de amizade que se converteu num amor clandestino”, entre um Dalí com 51 anos e a mãe de Pilar, então com 25.

Esta mulher, que tem 87 anos e continua a viver em Figueres, terá conhecido o pintor em Port Lligat, pequena vila costeira perto de Cadaqués, onde Dalí tinha casa e ela trabalhava como empregada de uma família que escolhia a região para ali passar grandes temporadas.

Toda a vida Pilar ouviu a mãe e a avó paterna dizerem-lhe que o pintor era o seu pai biológico. Frases como “és única como o teu pai” faziam parte do seu dia-a-dia, escreve o diário El País. Agora diz-se “feliz” por ela e pela mãe porque o tribunal terá finalmente condições para dar seguimento ao seu pedido de reconhecimento da paternidade.

Os resultados das análises de ADN, que serão efectuadas no instituto de ciências forenses de Madrid, deverão ser usadas no julgamento marcado para 18 de Setembro.

O advogado da alegada filha do pintor, Enrique Blázquez, defende que, caso se confirme que Salvador Dalí é seu pai, ela poderá reclamar “dois terços da herança”, usar o seu apelido e aceder a direitos de autor que envolvam a obra do catalão, avança o País, explicando que tudo o que diga respeito ao património terá de ser objecto de outra acção judicial. Os herdeiros são hoje o Estado e a Fundação Gala Salvador-Dalí, que gere o legado do artista e que recorreu da decisão que autorizou a exumação, mas perdeu.

Sexualidade misteriosa

A possibilidade de ver Dalí exumado num processo de averiguação da paternidade levou à publicação de diversos artigos de imprensa de especialistas no percurso do pintor catalão, que se distinguiu pela qualidade e a singularidade da obra plástica – e também pela personalidade complexa e extravagante, que chegava a ofuscar a arte. Entre eles está Ian Gibson, biógrafo de Salvador Dalí e também de outro dos gigantes das artes espanholas, o poeta e dramaturgo Federico García Lorca, com quem o pintor de Figueres terá tido uma relação de grande intimidade.

Gibson duvida que Dalí tenha um filho de outra mulher que não Gala (e dela não teve), a russa que conheceu em 1929, ainda casada com o poeta Paul Éluard, e que permaneceu a seu lado até à morte, em Junho de 1982, atirando o artista para uma profunda depressão de que nunca terá conseguido livrar-se.

Seja como for, defende nas páginas do diário El País o biógrafo irlandês, autor de The Shameful Life of Salvador Dalí, “desenterrar o seu corpo em busca do necessário ADN não deixaria de ser um acontecimento surrealista”.

Segundo o galerista colombiano Carlos Lozano, alguém que conhecia o artista como muito poucos, escreve Gibson, Salvador Dalí era na realidade um homossexual que tinha um “medo visceral” de se assumir como tal. Nas arrojadas festas que organizava em Paris ou na sua casa de Port-Lligat, na Costa Brava, Lozano, também pintor e bailarino, encontrava jovens muito bonitos de ambos os géneros, escolhidos por Dalí, que não parecia ter qualquer interesse em ter sexo com eles e se portava como um tradicional voyeur, chegando a masturbar-se a um canto, quase escondido.

Nas suas memórias, que contou ao escritor inglês Clifford Thurlow, Lozano lembra que conheceu Dalí – chama-lhe sempre Divino Dalí - quando tinha pouco mais de 20 anos e que foram o seu aspecto exótico e o seu género ambíguo que fizeram com que o pintor catalão se aproximasse.

Se for mesmo sua filha, Pilar Abel Martínez pode vir a destruir toda uma teoria sobre a sexualidade de Dalí, pode vir a pôr em causa a ideia de que não suportava ser tocado.

Ian Gibson defende, na sua biografia, que uma das pistas para esboçar um retrato das afinidades de Dalí e da sua relação com o acto sexual em si se encontra na aversão que o artista tinha aos genitais femininos. “Durante muito tempo experimentei a infelicidade de acreditar que era impotente”, diz o artista nas suas Unspeakable Confessions. “Nu, e comparando-me com os meus colegas da escola, descobri que o meu pénis era pequeno, lamentável e mole. Lembro-me de um romance pornográfico cujo Don Juan metralha os genitais femininos com uma satisfação feroz, dizendo que gostava de ouvir as mulheres ranger como melancias. Convenci-me de que nunca seria capaz de fazer uma mulher ranger como as melancias” (tradução livre feita a partir de um artigo do diário americano The New York Times).

“A sexualidade de Dalí era o seu segredo mais bem guardado”, diz Jesús Ruiz Mantilla num artigo que assina no diário espanhol El País. “[Mas] e se Salvador Dalí, em vez de bissexual, assexuado, entusiasta do onanismo, voyeur incorrigível, desbragado defensor do sadomasoquismo, tivesse sido, no que toca às suas pulsões sexuais, sinceramente, de trazer por casa?”, pergunta-se Mantilla, tendo por referência um livro sobre Gala escrito pela historiadora Estrella de Diego (Querida Gala).

Entre o que dizia sobre a sua vida sexual e o que ela realmente era haverá certamente espaço para expor o seu espírito contraditório, o mesmo que se revelava na arte, na política e nas suas relações pessoais. “Experimentei fazer sexo com uma mulher uma vez e essa mulher era Gala. Foi sobrestimado. Experimentei fazer sexo com um homem uma vez e esse homem era o famoso malabarista Federico García Lorca. Foi doloroso”, terá dito um dia. Com Dalí, nunca se sabe onde começa e acaba o mito.

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