Incêndio de Pedrógão Grande, um “to be, or not to be” à portuguesa

Para que serve Portugal investir milhões de euros a desenvolver especialidades que, na “hora da verdade”, não servem para nada?

No rescaldo da mais recente tragédia nacional, uma pergunta mantém-se no ar: qual foi a origem do incêndio de Pedrógão Grande? Saber esta resposta serve de pouco em relação à tragédia em si, porque de qualquer das formas Portugal estava sobre alerta de perigo de incêndio e nada foi feito. Uma inoperância que não seria resolvida mesmo se se soubesse a origem do incêndio, mas sim como uma estratégia de fundo (em benefício nacional e não dos interesses individuais) que parece não existir.

No entanto, saber a origem do incêndio tem um papel fundamental no apuramento de responsabilidades! Se o incêndio teve causas naturais, o Instituto Português do Mar e da Atmosfera (IPMA) deveria ser capaz de identificar a sua origem; se teve origem humana, a Policia Judiciária (PJ) tem obrigação de encontrar os culpados e agir judicialmente. Curiosamente, o que estamos a assistir no debate público é o IPMA a dizer que não terão sido causas naturais (ainda que as condições meteorológicas fossem propícias para a propagação do incêndio) e a PJ a dizer que sim senhor, foram causas naturais, argumentando terem sido as já famosas descargas eléctricas atmosféricas (ou trovoada seca), identificando até a árvore onde a dita descarga terá, alegadamente, caído. Isto dá entender que uma e outra instituição estão mais ocupadas a sacudir a água dos seus respectivos capotes em vez de apurarem o que realmente se passou.

Naturalmente, não pretendo aqui fazer juízos de valor além dos que já fiz (que me parecem justos), mas, tendo trabalhado em electricidade atmosférica (o ramo da Ciência no qual se estudam descargas eléctricas atmosféricas) durante os últimos sete anos, penso que terei uma palavra a dizer sobre este assunto. Além disso, contactei um especialista internacional nesta área, o prof. Alec Bennett (Universidade de Bath e BIRAL, Reino Unido), e, como tal, cabe-me chamar a atenção para o seguinte:

1. No início de 2016, o IPMA estava a renovar a sua rede de sensores de descargas eléctricas (da conhecida marca Vaisala) e, nessa altura, propus uma rede completamente nova com 13 estações de detecção de descargas eléctricas (desenvolvidas pelo referido prof. Alec Bennett) que cobriam todo o território nacional (incluindo as ilhas), o que a actual não faz. Cada estação destas tem um custo de cerca de 15 mil euros, ou seja, toda a rede teria um custo de 195 mil euros que em relação ao custo de cada sensor que o IPMA instalou (cerca de um milhão de euros cada um, quatro milhões no total). Corresponderia, assim, a uma poupança enorme e permitiria até, com parte desse dinheiro, criar uma equipa especializada na deteção e prevenção de descargas eléctricas. Quem sabe se não poderíamos ter evitado esta tragédia? Indo também mais além da situação actual, na qual dependemos da agência de meteorologia francesa Meteorage, o que nos dificulta o acesso aos dados originais (sem processamento). Esta proposta foi total e cabalmente ignorada pelo IPMA.

2. Durante a elaboração do relatório de apuramento das causas do incêndio, contactei o IPMA no sentido de colaborar na elaboração do mesmo, chegando a mediar o contacto entre o IPMA e o especialista que já referi. Assisti à troca de e-mails entre o IPMA e o dito especialista. Estranhamente, a opinião deste não foi tida em conta e não se reflecte sequer numa única linha do relatório final, o qual li com atenção. Este relatório, no que toca a electricidade atmosférica, resume-se a descrever os tipos de descargas eléctricas (nuvem-nuvem e nuvem-chão) que são detectáveis pela rede que o IPMA/Meteorage operam e não as que, muito provavelmente, foram a causa do incêndio e que são as nuvem-chão de mais fraca intensidade (cerca de três mil amperes de corrente) e que não produzem nem ruído nem relâmpago. Sendo de salientar que este tipo de descargas seriam, em princípio, detectáveis pela rede que tinha sido proposta ao IPMA por mim.

3. O mencionado relatório final do IPMA conclui existir uma baixa probabilidade de que tenha sido uma descarga eléctrica atmosférica a causar o incêndio, por não ter sido detetada atividade eléctrica através da rede do IPMA/Meteorage. Tendo em conta as limitações anteriores e salientando que o sensor de Alverca não estava a funcionar na altura do incêndio (a meu ver, o aspecto mais grave de todo este processo), a única probabilidade baixa é a de se ter conseguido detetar qualquer actividade eléctrica e não que esta tenha acontecido ou não. Sucintamente, não se ter detectado uma descarga eléctrica não significa que não tenha acontecido. Assim, o IPMA descarta, no mencionado relatório, com alguma fugacidade, diga-se, que o sensor de Alverca estar inoperacional não terá influenciado a não detecção da dita descarga. Isto é algo que carece de comprovação científica (através de simulações, medições, etc.), em especial por a rede de detecção de atividade eléctrica portuguesa ter apenas quatro sensores, de forma que, com a avaria do de Alverca, um quarto da rede estar inoperacional.

4. No sentido de se apurar, de forma científica, a ocorrência de descargas eléctricas atmosféricas no local do incêndio (dadas as limitações antes apresentadas), foi sugerido, ao IPMA, efectuar-se uma campanha magnética ao local do incêndio para aferir a ocorrência de anomalias magnéticas. Estas podem ser causadas pelos intensos campos magnéticos gerados durante as possíveis descargas eléctricas atmosféricas e poderão contribuir para o esclarecimento deste caso. Esta campanha está ao alcance das instituições científicas nacionais e poderia dar um contributo valioso para este assunto. Estranhamente, o IPMA apressou-se a concluir que o incêndio não terá sido causado por descarga eléctricas atmosféricas e a possibilidade de se realizar uma campanha deste tipo, mais uma vez, não vem mencionado no dito relatório.

Como forma de promover uma pequena reflexão, deixo as seguintes perguntas: para que serve Portugal investir milhões de euros a desenvolver especialidades que, na “hora da verdade”, não servem para nada? A quem serão atribuídas responsabilidades? Vai passar tudo em claro mais uma vez?

O autor escreve segundo as normas do novo Acordo Ortográfico

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