A vitalidade da música espanhola no Festival Estoril Lisboa

Em Lisboa, estas pequenas jóias musicais foram revisitadas com uma formação instrumental reduzida (com Moreno e o gambista Ventura Rico) e pela soprano Soledad Cardoso.

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A soprano Soledad Cardoso, detentora de uma voz de grande frescura e beleza tímbrica dr

Na sua 43.ª edição, o Festival Estoril Lisboa continua a caracterizar-se por um mosaico programático algo sinuoso, onde se cruzam os Cursos Internacionais de Música, o Concurso de Interpretação (este ano com a soprano Filipa Portela como vencedora), parcerias com outros festivais e alguns ciclos temáticos, dos quais sobressai a série de concertos em homenagem ao pintor Bartolomé Murillo (1617-1682) no 4.º centenário do seu nascimento, em associação com a  Lisboa — Capital Ibero-Americana de Cultura. Um momento alto deste ciclo que percorreu quatro séculos de música espanhola, deu-se com o regresso de José Miguel Moreno, exímio intérprete de instrumentos históricos de cordas dedilhadas, e do seu grupo Orphenica Lyra num conjunto obras vocais instrumentais do século XVII.

O programa Música en tiempos de Murillo retoma em boa parte o repertório do CD Música en tiempos de Velázquez (Glossa, 1993) no qual Moreno se apresenta com a soprano Marta Almajano. Afinal de contas, os dois grandes pintores foram contemporâneos durante várias décadas. Em Lisboa, estas pequenas jóias musicais foram revisitadas com uma formação instrumental reduzida (com Moreno e o gambista Ventura Rico) e pela soprano Soledad Cardoso, detentora de uma voz de grande frescura e beleza tímbrica, bem adequada a este universo estético. Com uma dicção clara, uma voz bem equilibrada ao longo de toda a tessitura e uma expressividade atenta ao carácter e significado do texto, a cantora transmitiu-nos com eloquência, mas sem exageros, a teatralidade assertiva de trechos como Ay que si, ay que no, de Juan Hidalgo; a dimensão poética de obras como Sosieguen, descansen, de Sebastián Durón, com a suas passagens em recitativo e sugestivos diálogos com a viola da gamba; ou a energia rítmica de peças baseadas em padrões da dança como as famosas jácaras No hay que decirle el primor e a chacona de Juan Arañés A la vida buona. Música extraída de obras cénicas e peças de câmara como os "tonos humanos” Aquella sierra nevada, Ojos pues me desdeñais e No piense Menguilla, de José Marin, imortalizados pela saudosa Montserrat Figueras, tiveram em Soledad Cardoso uma refinadíssima intérprete, que brilhou também num encore dedicado a Monteverdi: Si dolce è il tormento.

Como é habitual, José Miguel Moreno forneceu um suporte instrumental de primeiro nível às peças vocais, mostrou uma técnica límpida, transparência polifónica e uma musicalidade elegante. O seu virtuosismo e forte sentido rítmico contagiou o público em danças que constituem pontos culminantes da música ibérica como as Folias de Gaspar Sanz, o Villano, de Francisco Guerau, e em vários tipos de Canarios e suas múltiplas variações (nas versões de Guerau, Antonio Martín y Coll e Sanz).

No dia 17, no Palácio Foz, a pintura mística de Murillo foi homenageada pelo programa Visiones místicas para piano, proposto por Mario Prisuelos. Quatro Sonatas do compositor setecentista Antonio Soler, as composições intimistas, com texturas delicadas e imaginativas harmonias de Federico Mompou (cinco peças da Música Callada) e Joaquín Turina (Ante la Anunciación de Fra Angelico) constituíram o universo mais conhecido, ainda que pouco interpretado em Portugal, de um alinhamento que fugiu à rotina e contou com comentários às obras feitos pelo próprio pianista.

Mario Prisuelos é um grande divulgador da música dos séculos XX e XXI. Com desenvoltura técnica, uma ampla paleta dinâmica e mostrando um forte temperamento, defendeu com convicção várias peças em estreia em Portugal, ilustrativas da vitalidade da criação contemporânea espanhola. Sobressaiu o tríptico Visiones, de Joan Magrané (n. 1988) — obra de envergadura e grande exigência para o pianista inspirada pelos místicos São João da Cruz, Santa Teresa de Ávila e Fr. Pedro de Encinas — mas Láquesis, de Brais Nóvoa (n. 1987), e Memento, de Jesús Torres (n. 1954), constituíram também boas surpresas. Como extra, Prisuelos realizou ainda uma interpretação apoteótica, mas nem sempre clara devido ao excesso de pedal, da Dança Ritual do Fogo, de Falla.

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