Reconstrução de casas garantida, compensações ainda não

A reconstrução das primeiras habitações será financiada a 100%. As segundas casas não. Quanto às hortas e animais, a compensação não está garantida. Um mês depois do fogo, Pedrógão e os municípios vizinhos não têm onde enfiar tanto vestuário. E debatem-se com a tentativa de açambarcamento de alguns.

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Adriano Miranda

“Se não começasse, a chuva levava-me o que o fogo não levou”. Falando do alto das escadas da sua casa, uma mulher de camisola cor-de-laranja, argolas de ouro a emoldurar o cabelo branco e curto convida-nos a fugir dos 39ºC para a frescura das suas escadas, onde um estendal de roupa lavada ilude o cheiro de fumo e cinza que continua colado à pele dos sobreviventes, um mês passado desde o incêndio que devastou Pedrógão Grande e os concelhos vizinhos, matando 64 pessoas.

Estamos em Mó Grande, uma aldeia na fronteira entre Pedrógão e Figueiró dos Vinhos. O caminho que fizemos para cá chegar implicou passarmos por quilómetros e quilómetros de terra queimada, numa monotonia enjoativa quebrada só aqui e ali pelos primeiros fetos verdes que começam a despontar das cinzas. À volta da casa de Dirce Nunes, 77 anos, contam-se dois currais, uma garagem e a cozinha de todos os dias destruídos pelo fogo. O corpo principal da casa escapou, mas no telhado arderam quatro barrotes. Daí a azáfama dos dois trolhas que descarregam telhas e as fazem subir pelo andaime amarelo até ao telhado.

“Depois do fogo, tivemos cá chuva e água com fartura, que entrava dentro de casa e ia alagando tudo o que ficou. Liguei a um empreiteiro, que é da família, e pedi-lhe que cá viesse”. Entretanto, da câmara chegou a garantia de que a factura lhes poderia ser apresentada. E esta manhã de quarta-feira passou cá também o ministro do Planeamento e das Infraestruturas, Pedro Marques, a descansá-la em relação aos encargos inerentes às obras em curso.

Assegurada a reconstrução da casa principal, sobram as dúvidas quanto ao resto. “Não deram garantias nenhumas”. Eis as contas que Dirce fez chegar à câmara: “Além dos currais e da garagem onde ardeu o carro, perdi seis cabeças de gado, cinco ovelhas e um cordeiro, e várias galinhas. Na horta, foi-se tudo: oliveiras, árvores de fruto, tronchudas…”. A esta soma, somam-se outros custos de contabilidade mais difícil: “Quando precisávamos, matávamos um borrego para nós. Se cresciam um bocadinho mais, vendíamo-los…”.

Os cadáveres do gado foram entretanto recolhidos pelos serviços municipais. As galinhas mortas lá se vão decompondo soterradas pelas telhas partidas. “A santa casa perguntou-nos se queríamos galinhas, o problema é que nos falta o curral para as meter”, lamenta. Os 600 euros de reforma que Dirce e o marido – agora acamado - recebem, e dos quais se descontam logo os 150 euros gastos em medicamentos, não chegam para grandes aventuras. Ainda assim, Dirce lá replantou alfaces num pequeno talhão. “Tanto castanho estava-me a deixar doente”, explica, para desabafar que, pela primeira vez na vida, sente a vida a abandoná-la. “Se calhar, quando acabarem as obras em casa, já cá não estou eu…”.

Enquanto Dirce espera, o presidente da Câmara de Figueiró dos Vinhos, Jorge Abreu, marca, a poucos quilómetros de distância, o ritmo das ajudas às populações que sobreviveram à contabilidade arrasadora do fogo que lavrou entre 17 e 21 de Junho: 45.979 hectares ardidos e os prejuízos, estimados em 497 milhões de euros, compreendem 491 casas destruídas (das quais 169 eram primeira habitação, 205 segundas casas e 117 estavam devolutas) e 48 empresas afectadas na sua actividade produtiva. Só restabelecimento do potencial produtivo dos 2.018 agricultores afectados deverá custar 21,5 milhões.

Explica o autarca que o Estado custeará em 100% a reconstrução, total ou parcial, das casas destruídas que eram primeira habitação. No caso de Figueiró são 24 casas. Pedrógão está pior, com 121 casas atingidas, das quais 56 a pedir reconstrução total. Para isso, os três municípios mais afectados, além de Pedrogão e Figueiró também Castanheira de Pera, têm já garantidos 10,5 milhões. “Nas casas que requerem intervenções mais simples, até cinco mil euros, as obras já estão no terreno; as próprias famílias tratam disso e apresentam a factura à câmara que paga directamente ao fornecedor do serviço. As obras acima de cinco mil euros obrigam a que se peça três orçamentos para se poder optar pelo melhor. Já as obras que implicam reconstrução total e os anexos com mais de 50 metros quadrados requerem licenciamento e provavelmente terão de ser as autarquias a assumir a sua gestão”, refere o autarca, explicando que foi criada “uma linha verde para garantir a execução rápida dos projectos”, sendo que, de acordo com os critérios definidos pela Segurança Social, terão prioridade as famílias numerosas ou monoparentais.

E quanto aos anexos e às propriedades agrícolas? “O ministério da Agricultura vai concluir o levantamento e poderá haver contrapartidas mas não há garantias, porque o que se vai tentar é recorrer a verbas comunitárias”, explica Jorge Abreu. Quanto às segundas habitações, não deverá haver financiamento. “À partida, será criada uma linha de crédito bonificada – sem juros ou com juros mais baixos”.

Açambarcamento...

Em concelhos despovoados e muito envelhecidos, em que, como caracteriza o provedor da Santa Casa da Misericórdia de Pedrogão Grande, João Marques, “a maioria vive de reformas muito baixas, oriundas de actividades mal remuneradas”, e em que a floresta e a criação de alguns animais serviam, a par das pequenas hortas de subsistência, para garantir que a pobreza não chegava à mesa, as dúvidas quanto às ajudas que extravasem as habitações não contribuem para assegurar o regresso à normalidade. “As pessoas andam cabisbaixas e tristes. Muitos viviam da rentabilidade extra que lhes vinha de venderem uns eucaliptos e uns pinheiros de vez em quando. Aqueles que, além da casa e da floresta, perderam os seus animais e os seus equipamentos agrícolas têm mais dificuldade em mostrar-se resilientes”, diagnostica o provedor.

Pressente-se nas ruas e caminhos destas aldeias um sentimento generalizado de depressão. Vai demorar muito até que o esquecimento suavize a falta dos que morreram. A psicóloga Sofia Pires avisa, porém, que o pior ainda está para vir. “Algumas pessoas ainda estão com aquela adrenalina inicial. Ainda não lhes ‘caiu a ficha’”, diagnostica, enquanto organiza os stocks alimentares que se acumulam nas instalações da Santa Casa para distribuir pela população.

Há sacos de batata empilhados, um camião frigorífico com bens que exigem frio permanentemente ligado, fruta, legumes, sacos de brinquedos e livros infantis, mercearias e produtos de higiene e limpeza pessoal e doméstica. A distribuição das toneladas de donativos que começaram a chegar num fluxo ininterrupto desde que soaram os alarmes para os incêndios dividiu-se, como explica João Marques: “Vestuário, electrodomésticos, mobiliário, materiais de construção e outros equipamentos mais pesados ficaram com a câmara; higiene, produtos de higiene pessoal e doméstica e produtos farmacêuticos com a Santa Casa”.

Nos primeiros dias, descreve Sofia Pires, a ajuda foi distribuída como “numa rega por alagamento”, ou seja, “dava-se a quem pedisse, para garantir que ninguém ficava sem ajuda”. Uns dias depois lá conseguiram, com a ajuda da Segurança Social, referenciar as pessoas afectadas e a distribuição começou a ser mais criteriosa.

O problema agora é outro. É dissuadir a tentação de açambarcamento, natural em quem acabou de perder o pouco com que sempre viveu.

- Já cá veio algumas vezes esta semana. Não quer dizer que não vá levar, mas temos que garantir que a ajuda chega para todos os que precisam - estava Sofia Pires a admoestar quando o PÚBLICO cá chegou.

- Se houver possibilidades levo. Se não houver também não fico zangado – encolhe-se o visado.

Deslocara-se às instalações da Santa Casa numa motoreta azul, daquelas com um pequeno atrelado em caixa aberta, para carregar mercearias e o mais que houvesse. Sai com o atrelado cheio, nomeadamente de frescos perecíveis ou de produtos que ameaçam passar o prazo de validade. “Às vezes, é complicado gerir”, explica Sílvia Pires, “mas tentamos sensibilizar as pessoas para as fazer compreender que não são os únicos a precisar de ajuda”. O provedor João Marques confirma que “não foi fácil no início distinguir as pessoas verdadeiramente necessitadas daquelas que faziam mais barulho”.

Menos parcimoniosa na escolha das palavras, Rosa Simões não chega a levantar-se do banco em que está curvada à porta do seu minimercado em Vila Facaia, para acusar o que diz serem os ímpetos de açambarcamento. “Qualquer dia começam a aparecer as coisas no lixo. As pessoas estão a fazer um celeiro em casa. Muitos estão a abusar…”, vaticina, para garantir que não é o interesse comercial que lhe alimenta a indignação: “Podem pensar que falo por ter este mercado onde, tendo onde ir buscar de graça, as pessoas deixaram de comprar, mas não é por isso que digo o que digo.”

e vestidos de noiva e roupas de carvanal

No início, os produtos de limpeza eram os mais procurados na Santa Casa da Misericórdia de Pedrógão Grande. “Para limpar as casas ou o que restou delas…”, explica Joana, uma voluntária. Agora começaram a surgir os pedidos de sementes e pés de hortícolas para replantar as hortas. “Ontem [última quarta-feira] andámos a distribuir pés de hortícolas e as pessoas ficaram bastante entusiasmadas. Até agora não podiam fazer nada porque o solo continuava quente. Mas já ninguém aguenta ver a terra queimada e começaram a plantar”, conta a voluntária.

Sílvia Pires ri-se quando se lembra da pessoa que ali chegou a perguntar se não teriam um vaso de flores. “Até os pequenos fetos, que são uma espécie invasora, estão a ser celebrados. As pessoas gostam de ver esse verde de volta…”.

Tanto de alfaias agrícolas como de materiais de construção, há coisas de que as pessoas estão sedentas. Por exemplo:

- Basta meia hora. As pessoas precisam de alguém que as ouça falar do que lhes aconteceu - explica a psicóloga.

- E do que é que não precisam mais?

- Vestuário - respondem todos.

Ainda há dias o Facebook estremecia de indignação perante o vídeo de alguém que alegava não ter conseguido descarregar um camião cheio de peças de roupa. As tendas montadas para o efeito em Pedrógão Grande, alegou, estavam fechadas, sem ninguém que recolhesse os donativos. Pudera: por estes dias, a autarquia local, esgotada a sua capacidade de armazenamento, teve de improvisar duas enormes tendas brancas para armazenar tanto vestuário. E o pior é conseguir juntar mãos suficientes para fazer a triagem.

“Algumas pessoas parecem considerar que Pedrógão é o caixote do lixo que têm em casa”, exaspera-se uma munícipe. “Vestidos de noiva, roupas de carnaval, peças rasgadas e até roupa interior suja – aparece aqui de tudo”, enumera. Louvando o esforço dos funcionários municipais, a mulher lembra que estes não têm como conseguir gerir “uma coisa com esta escala”. E, agastada com tantas críticas, vindas de quem não tem ideia do que é erguer do nada uma estrutura capaz de acolher os contributos de todo um país a insistir em ajudar, lembra que a ajuda mais necessária não implicar necessariamente esvaziar os sótãos ou as garagens lá de casa, “até porque as pessoas em Pedrógão não têm onde meter nada”. O que falta, então? “Materiais de construção, matérias-primas, mão-de-obra…”, responde.

Mais comedido, o presidente da Câmara de Figueiró dos Vinhos confirma que o excesso de oferta, mais do que ajudar, complica. “Neste momento temos um pavilhão desportivo, umas antigas instalações fabris e o pólo de formação do IEFP cheios de sacos com vestuário. Isto começa a ser um problema para nós”, declara. E o pior é que continuam a chegar camiões TIR, muitas vezes provenientes das comunidades de emigrantes portugueses, a querer descarregar sem qualquer aviso prévio. “Isto exige mão-de-obra e uma capacidade de armazenamento que não temos”, apela Jorge Abreu, garantindo que os três concelhos vão ter que somar outra tarefa às inúmeras com que já se debatem: a de desviar tais donativos para outras zonas carenciadas do país.

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