O inferno de Pedrógão: as responsabilidades políticas acumuladas

A única forma de garantir que o que aconteceu não mais se repetirá é procurar as causas e encontrar as soluções.

“Se não disseres a verdade sobre ti próprio não poderás dize-la sobre os outros.”
Virginia Wolf

1. Um mês depois do inferno de Pedrógão Grande e perante a falta de respostas por parte do Estado e do Governo (não obstante a responsabilidade que têm em proteger a vida de pessoas e de seus bens), paira nas populações do Pinhal Interior e das Terras de Sicó um sentimento não só de luto e de tristeza, mas também de desespero, de revolta e de temor, perante o que infelizmente não pode deixar de ser já qualificado como uma gravíssima falência do Estado. Falhanço que para muitos de nós era impossível de não acontecer, tamanhas foram as decisões políticas que nas últimas décadas foram tomadas, no domínio de várias políticas publicas sectoriais com o Estado a ser o problema por ausência e insuficiência.

É que esta tragédia não foi responsabilidade apenas da mãe natureza. Muito deve à evidente falta de competência e de responsabilidade da República, em vários dos seus órgãos de soberania. Não deixando de ser relevante constatar o amor súbito de tanta gente por aquele território de baixa densidade, tão perto do rico litoral.

2. É certo que, desde há décadas, por sucessivas decisões governamentais, os territórios e as populações do interior de Portugal continental foram paulatinamente abandonados pelo Estado, designadamente através do encerramento de serviços públicos de proximidade, essenciais para os portugueses(as) que vivem em zonas sob ameaça de desertificação ou já desertificadas. Decisões que poucos de nós fomos tentando contrariar, atenuar e até inverter. Mas, infelizmente, muitas vezes, os centralistas, sempre aconchegados pelo critério dos números, da estatística, do número de habitantes, do número de eleitores, se encarregaram de fazer o xeque-mate, muitas vezes coligados com os seus amigos nómadas políticos e sem terra, que sem pingo de vergonha e com falsas lágrimas de crocodilo quase tudo foram caucionando.

Assim, ao longo dos anos, o Estado tem vindo a desistir destes territórios, reduzindo serviços e reduzindo a sua presença naquelas regiões. Inúmeros serviços de segurança pública, tribunais, serviços do Estado na área da agricultura, entre os quais serviços florestais, centros de saúde, incluindo os seus serviços de atendimento permanente, serviços de finanças, estabelecimentos de ensino público, estações dos correios, etc., etc.

Não é menos certo que políticas florestais erradas, que desequilibraram o ordenamento do território nacional, promovendo grandes manchas contínuas de floresta sem se cuidar da respetiva segurança e manutenção, limpeza e acessibilidade, em suma, da prevenção de incêndios, que certamente terão contribuído para a fragilização do país em casos de catástrofes como a ocorrida, foram a marca de muitos governos da República.

3. As políticas de abandono do Interior não podem, neste tempo de especial gravidade, deixar de ser igualmente confrontadas, sob pena de o país voltar a deixar cometer os mesmos erros.

A tragédia que se abateu sobre o Pinhal Interior, as mortes horríveis que aí tiveram lugar, o sofrimento indizível das vítimas e das suas famílias tiveram causas também próximas e estas radicam fundamentalmente na inoperância dos serviços do Estado que ao Governo compete dirigir, conforme, aliás, a Constituição da República garante.

A única forma de garantir que o que aconteceu não mais se repetirá é procurar as causas e encontrar as soluções. E não só ao nível das responsabilidades políticas acumuladas. Do presente. Mas também do passado. E essa tarefa já devia estar em curso, ao invés de o país assistir, atónito, ao triste espetáculo de ver serviços públicos a “sacudirem a água do capote”, quase parecendo que se procura transportar apenas para a administração pública o caos que, em Pedrógão Grande, se viveu naquele fatídico dia.

4. O país sabe já — e não foi por informação oficial do Governo — que, pelas 15h00 do dia 17 de Junho, o incêndio de Pedrógão era de grandes proporções e que, nessa hora, era já solicitado o reforço de meios. E o Governo da República é o órgão supremo da Administração Pública. Mais palavras para quê?

Mas o que o país não compreende é a razão de esse alerta não ter sido traduzido no atempado corte das vias rodoviárias inseguras, designadamente na fatídica Estrada Nacional n.º 236-1, e por que razão a GNR não teve acesso a qualquer informação que apontasse para a existência de um risco potencial ou efetivo em seguir em qualquer dos sentidos daquela estrada, levando, assim, à morte de dezenas de pessoas queimadas vivas.

O que o país ainda não percebe é por que razão as pessoas que se encontravam em locais seguros, como é o caso da praia das Rocas, em Castanheira de Pera, não foram aconselhadas pelas autoridades, direta ou indiretamente, a permanecer em local seguro, deixando-as ir, assim, ao caminho da morte.

O país já sabe, igualmente, que a desorganização, a descoordenação e a total insuficiência de meios caracterizaram as primeiras horas de combate ao incêndio de Pedrógão Grande, que o sistema de operações de socorro falhou rotundamente, designadamente por inoperância do comando das operações de combate ao incêndio. Foi inclusivamente noticiado que o plano distrital de proteção civil de Leiria apenas foi ativado mais de 24 horas após a deflagração do incêndio, o que é verdadeiramente criminoso. E o que o país sabe é que também no território da tragédia a resposta também falhou, porque os tais cortes e o tal abandono de serviços públicos foram responsáveis pela morte de muitas pessoas.

5. O país não percebe que o Governo não tenha assumido qualquer responsabilidade política, e demore tanto tempo a tomar as medidas exigíveis para restabelecer a confiança dos cidadãos nas instituições públicas e, em particular, nas entidades encarregues da proteção civil.

São muitas as questões que falta esclarecer e não são menos as responsabilidades que importa apurar. Responsabilidades políticas. Mas também não políticas.

Sem prejuízo de outras diligências, inquéritos e investigações em curso ou a iniciarem-se, e cuja isenção e independência se exige, não posso, enquanto deputado eleito pelo círculo de Leiria, que vive como seus os territórios e as suas gentes, as suas autarquias, as suas instituições, deixar de em nome dos que morreram, dos que sofrem e dos que tudo perderam, demonstrar a minha incredulidade perante muita incompetência que deu origem a tal tragédia. Bem como a minha revolta perante tanta falta de memória de muitos e também tanta desfaçatez por tanto manifesto visível aproveitamento político. Aprendi na vida política que usarem-se mortes e falecimentos para fazer política é um erro. E as pessoas, mesmo que distantes dos centros mais populosos e cosmopolitas, também o sabem e percebem. E por isso repudiam quer os responsáveis políticos, quer os aproveitadores de catástrofes do tipo da de Pedrógão.

6. Aliás, em livro publicado há oito anos (Pinhal Interior e Terras de Sicó, Editora Âncora), dei um contributo para aquela região. Conheço bem cada recanto daquele território. Não é a tragédia que me faz lá ir. Antes pelo contraio. Tenho ido sem avisar jornalistas. Quase sempre anónimo. Mas quase sempre muitos a reconhecerem-me e a lembrarem-se do que muitos de nós de lá, ao longo de décadas, fomos avisando, que algo de muito mal se estava a fazer àquela gente. Impõem-se muitas perguntas. E exigem-se as respostas certas?

Qual o número de efetivos da GNR e de Guardas de Recursos Florestais e equiparados existentes nos municípios de Ansião, Alvaiázere, Castanheira de Pera, Pedrógão Grande e Figueiró dos Vinhos, no dia 17 de Junho de 2017, e qual a sua distribuição exata no território?

Quais foram os meios de emergência médica do INEM deslocados para o local da tragédia e que quantidade de recursos humanos e meios, designadamente médicos, enfermeiros e ambulâncias, foram disponibilizados?

Qual foi a evolução concreta, nos últimos 20 anos (1997-2017), nos municípios de Ansião, Alvaiázere, Castanheira de Pera, Pedrógão Grande e Figueiró dos Vinhos, dos serviços públicos, designadamente: da Guarda Nacional Republicana; do Serviço Nacional de Saúde; do sistema público de ensino; da autoridade tributária; do Ministério da Agricultura, em particular dos serviços florestais; dos serviços de correios e de telecomunicações? Qual foi a evolução concreta dos efetivos humanos dos serviços públicos referidos anteriormente no período e nos municípios mencionados?

Estas são questões que um mês depois do inferno de Pedrógão têm de ser respondidas. É que tenho visto por aí muita gente a fugir às responsabilidades, passeando-se pelo território da tragédia com um exibicionismo gratuito desprezível.

O autor escreve segundo as normas do novo Acordo Ortográfico

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