Viajar é montar e desmontar as caixas de que somos feitos

António Pedro Moreira, o mentor do projecto Daqui Ali, é o protagonista desta semana. Tem mais de 70 países no currículo

Adriano Miranda
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Londres foi a primeira cidade que António Pedro Moreira visitou fora do país. Tinha 13 anos. A mãe é professora de inglês e todos os anos leva a turma a visitar um país de língua oficial inglesa. Naquele ano, foram até à capital do Reino Unido e teve a oportunidade de partir com eles. Tinha 13 anos e aquela curta viagem “mudou tudo”. “Apercebi-me da diferença entre conhecer o aspecto de uma cidade e de facto vivê-la, de ser parte integrante de uma coisa da qual só se conhecem imagens.” Mais tarde, já na Finlândia, onde fez Erasmus durante um ano, deu-se conta da “relatividade dos conceitos”. “Percebi que havia diferentes formas de fazer a mesma coisa e nenhuma é necessariamente má ou mal feita.”

Descobrir as caixas que formam cada pessoa, cada povo — e desconstruir as suas pelo caminho — é uma das razões por que António Pedro Moreira viaja. Aos 33 anos, visitou mais de 70 países. Uma mão cheia deles com os pais, quando era miúdo; depois sempre que as férias o permitiam. Trabalhou como psicólogo na Noruega e em Inglaterra. Mas o sonho de fazer longas expedições pelo mundo — e viver disso — só se cristalizou em 2009, quando conheceu um grupo de viajantes na Índia que lhe mostraram que não só era “possível”, como “não era preciso ser nenhum afortunado”. Pedro tinha encontrado a caixa itinerante que lhe enchia as medidas. Demitiu-se no ano seguinte e, em 2011, partiu à boleia num périplo de ida e volta a Singapura. Assim nascia o projecto de vida viandante a que chamou Daqui Ali.

Dos 50 mil quilómetros calcorreados, 22 mil foram percorridos em carros desconhecidos, num total de 314 boleias e 34 países, precisa no primeiro livro de viagens, Daqui Ali: De Portugal a Singapura por terra. Publicou-o em 2013, regressou à estrada no ano seguinte para ir de bicicleta até à África do Sul. Pedro Moreira — que no Facebook se apresenta como Pedro on the road — nunca tinha pedalado mais do que 12 quilómetros num dia, mas sentiu-se inspirado pelas histórias de outros viajantes portugueses e partiu. “Tudo depende de ti. Onde quer que chegues foi com o motor do teu corpo e isso é fixe. Queria saber como era chegar muito longe sabendo que fui eu que fiz todo o esforço para lá chegar”, recorda. O objectivo é testar formas diferentes de viajar a cada nova partida. Pôr à prova ideias preconcebidas sobre países e culturas. Mostrar que o difícil é possível e se calhar nem tão complicado assim. E transbordar a caixa da vida com memórias enriquecedoras e experiências inesquecíveis. Primeiro à boleia, depois de bicicleta, agora sem dinheiro. Este ano, deverá percorrer parte do continente americano, de Nova Iorque à Colômbia, sem um cêntimo no bolso. Porque não? “Não acho que todas as pessoas devam fazer como eu mas, salvo raras excepções em que o meu instinto diz o contrário, acho que é a dizer sim que temos as experiências mais fixes.”

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Como a que viveu no Gabão, quando sem querer se voluntariou para tomar o lugar de xamã numa cerimónia da tribo da aldeia onde tinha ficado a pernoitar. Vestiram-no a preceito, pintaram-lhe o corpo de branco, dançaram e deram-lhe “bebida sagrada” para ter “visões” e guiar o grupo numa viagem espiritual. “Foi a experiência mais surreal da minha vida.” O momento faz capa do último livro, Daqui Ali: De Portugal à África do Sul de bicicleta, editado no final de 2016. Numa caixa de papelão, Pedro traz vários exemplares assinados para entregar numa apresentação em Lisboa. Quando não está em viagem ou a correr o país para mostrar — e vender — os livros publicados, divide-se entre Vale de Cambra, onde cresceu, e São João da Madeira, onde vive com Graciete, com quem casou no ano passado. Ela fica quando ele parte, mas das longas viagens também se construiu uma vida a dois. E o pedido de casamento. Durante o primeiro périplo, Pedro descobriu nos templos de Angkor Wat, no Camboja, o cenário ideal para esconder o anel que ela lhe tinha oferecido na Índia, meses antes. “Na altura, namorávamos há uns 11 anos e já tinha percebido que a casar-me com alguém seria com ela.” No final da segunda viagem, quatro anos depois, foi ter com ela ao Sudeste Asiático. Viajaram um mês, levou-a três dias a Angkor Wat enquanto procurava o esconderijo entre centenas de templos. Não o encontrou mas tinha um plano B. “Foi giro, ela disse que sim. Foi uma história bonita na mesma.”

Depois de duas obras de ficção publicadas através de uma editora, Pedro Moreira decidiu tomar rédeas à edição dos próprios livros de viagem, onde relata as experiências vividas em cada périplo com o mesmo despudor com que as conta no blogue e agora, entre garfadas de almoço num restaurante em Lisboa. Em Angola, por exemplo, trataram-no com tanta hospitalidade que dos 60 euros que gastou, apenas 10 lhe saíram do orçamento. No Gabão, um ronco inesperado no denso da floresta deixou-o petrificado. “Sentia o coração na ponta dos dedos.” Só pensava que ia ser “aquele ‘tuga’ que morreu comido por uma pantera negra”, ri-se. Descobriu depois que o mais provável é ter sido um gorila. Na viagem anterior, acabou detido duas noites no Laos, acusado de crimes que não teria cometido para lhe extorquirem dinheiro. Foi mandado parar 23 vezes pela polícia na Nigéria, acusado de ser terrorista. Na Serra Leoa, teve de fazer jogo de cintura para passar a fronteira sem pagar pelo “favor”. “Não te podes mostrar intimidado mas também não podes ser demasiado cool senão pensam que não os estás a levar a sério. É um equilíbrio desgastante.”

Os encontros, as experiências e as reflexões vividas durante as viagens dão corpo aos livros e ao plano de vida: fazer do ciclo deambulante um emprego a tempo inteiro. Viajar, escrever no regresso, partilhar, partir novamente. “A vantagem de ser um autor independente é que posso fazer exactamente o livro que quero e no final escolher o preço para o público.” Como não partilha o lucro, recebe uma percentagem maior em cada exemplar, conseguindo pedir um valor mais baixo ao leitor. Ganha quem escreve, ganha quem lê. “É a única razão pela qual tenho uma réstia de esperança de viver disto.”

Com o último livro, fez 40 apresentações pelo país. Desta vez gostava de chegar às 100. E ir a mais escolas. “Não vou vender praticamente nada mas sempre pagam a deslocação e falo com miúdos que às vezes precisam de um bocado de inspiração.” Quer mostrar-lhes que não têm de fazer todos as mesmas coisas e que não há problema em cada um seguir o seu caminho. “Às vezes somos um bocado encaixotados e é fixe perceber que podes fazer a tua própria caixa, não precisas de viver na dos outros.”

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