Transferir dinheiro em vez de distribuir bens alimentares pelos refugiados

Programa Alimentar Mundial, a maior agência das Nações Unidas, está a mudar a estratégia. A República dos Camarões é um exemplo

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A qualquer campo de refugiados que vá, Bibata Sankara, responsável pela operacionalização do Programa Alimentar Mundial (PAM) em Batouri, na região Leste da República dos Camarões, ouve elogiar o programa de transferência de dinheiro ou pedir que esse venha substituir o de distribuição de alimentos.

No método tradicional, uma vez por mês, durante três dias, as pessoas formam filas enormes para recolher cereais, leguminosas, óleo vegetal, farinha enriquecida com nutrientes, sal. Tudo isso chega de diversas partes do mundo, o que implica tempo, mão-de-obra, transporte, combustível. E há sempre gente que vende o que não precisa para poder comprar o que precisa.

O novo programa foi introduzido na República dos Camarões em Maio de 2016. No final de Abril deste ano, abrangia mais de 40 mil refugiados da República Centro-Africana e outros tantos da Nigéria.

Cada titular recebeu um telemóvel e um cartão SIM. Todos os meses, cai-lhe na conta um saldo de 4400 francos CFA por cada membro da família. Há uma rede de pequenos comerciantes à qual pode recorrer para comprar os bens alimentares de que precisa. Quando quiser, pode comprar carne, peixe, massa, vegetais, frutas…

“As pessoas gostam mais desta modalidade”, constata Bibata Sankara. As famílias podem ter uma alimentação mais diversificada, a agência humanitária poupa no transporte, a economia local desenvolve-se.

O programa já funciona, por exemplo, em Timangolo, a sete horas e meia de Yaoundé, a uma hora da fronteira com a República Centro-Africana. Desde Março, em cada mês, o PAM transfere 26 milhões de francos CFA por 5907 refugiados. E no campo e fora dele vêem-se os comerciantes parceiros a vender sal, açúcar, tomate, leite, massa, arroz, farinha de mandioca, carne…

Issa Moussa Mahamat, de 70 anos, e dois amigos, bem mais novos, abriram um talho. Não lhes falta clientela. Neste campo moram mais de sete mil refugiados. Era à criação de gado e à venda de carne que se dedicavam na República Centro-Africana, de onde fugiram em 2014, deixando para trás um país mergulhado numa guerra civil. Veio com a família toda – as duas mulheres, os 20 filhos, os três netos. Entretanto, nasceram mais sete netos. E há que ajudá-los a crescer.

A maior parte dos refugiados ainda precisa de assistência para satisfazer as necessidades mais básicas. Nas regiões Leste e Adamaoua, que fazem fronteira com a República Centro-Africana, o Programa Alimentar Mundial distribui comida a mais de 200 mil pessoas, incluindo 156 mil refugiados e 44 mil camaronenses das comunidades que os acolhem. O programa de transferência de dinheiro não pode avançar em qualquer sítio. Há alguns requisitos, esclarece Bibata. Há que haver rede de telemóvel, capacidade no mercado local de fornecer os bens alimentares.

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A ideia de que podia ser mais interessante distribuir dinheiro do que alimentos começou a ser discutida em 1991. Dez anos depois, só 1% da ajuda alimentar se fazia através de dinheiro, haveria de explicar Deborah Hardoon, autora dos últimos três relatórios da Oxfam International, uma confederação de 17 organizações que actua em mais de 90 países, no final de Junho, num curso de Verão sobre desenvolvimento internacional organizado pela Plataforma Portuguesa de Organizações Não Governamentais para o Desenvolvimento e pela Fundação Calouste Gulbenkian. As organizações humanitárias estavam habituadas a trabalhar de outra forma e tinham sistemas montados para o fazer.

A reviravolta deu-se em 2004, com o tsunami do oceano Índico. “Houve imensas doações”, recordou.  E, por isso mesmo, oportunidade de experimentar. Várias organizações fizeram-no. 

Havia, contou Deborah Hardoon, muitas ideias feitas. “Se damos dinheiro, as pessoas vão gastá-lo em cigarros e noutras coisas de que não precisam. Isso vai criar uma enorme inflação nos mercados locais. Quem receber dinheiro vai ficar exposto ao risco de ser atacado e roubado pelos chefes locais.” Feitos o acompanhamento e as avaliações, desfizeram-se muitas dessas ideias.

Os refugiados usavam o dinheiro para comprar comida, roupa, livros escolares. Alguns compravam uns maços de cigarros e algumas bebidas. “São pessoas como quaisquer outras, que primeiro do que tudo querem alimentar a família, pôr os filhos na escola”, refere. O risco de inflacionar os preços em volta podia ser gerido. E o de roubo era igual ao que existe com os bens alimentares. “Isto desenvolve o mercado local e dá às mulheres mais poder de decisão”, diz.

Há que atender aos contextos de cada crise humanitária. Nos Camarões, um dos sítios onde o programa está a avançar, já houve alguns acertos. No início, entregavam o saldo todo ao homem, considerado a cabeça da família. Depois, perante dinâmicas observadas entre famílias poligâmicas, mudaram de estratégia. “O homem recebe a sua parte, uma mulher recebe a sua parte e a dos seus filhos, a outra mulher recebe a sua parte e a dos seus filhos”, diz Bibata. “Se ficava tudo em nome do homem, ele podia dar tudo à mulher preferida.”

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