Histórias do Tour: Guillaume Martin, o corredor-filósofo

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Reuters/BENOIT TESSIER

“A Volta a França é uma máquina de distorcer o tempo”. A frase, plasmada nas páginas do Le Monde, só poderia pertencer a Guillaume Martin. Profunda, rebuscada, como ele. Num pelotão adicto às redes sociais, que tem no telemóvel uma extensão natural do braço, alguém que ousa carregar quatro livros (um para cada semana do Tour, um quarto, caso a leitura flua) é uma ave rara. E as particularidades do jovem corredor, nascido na Normandia há 24 anos, não ficam por aqui. Dono de um mestrado em filosofia, especialista em Nietszche – escreveu uma dissertação intitulada “O desporto moderno: a colocação em prática da filosofia nietzschiana?” – e cronista no reputadíssimo diário francês, o trepador da Wanty-Groupe Gobert ganhou, sem esforço, o cognome de ciclista filósofo.

Praticamente desconhecido do grande público, apesar das inúmeras presenças em fugas – foi terceiro na 8.ª etapa -, Guillaume Martin tem feito as delícias dos jornalistas que acompanham a 104.ª edição da Grande Boucle. E há tanto para explorar. Comecemos pela origem de tudo. Desde os cinco anos, habituou-se a lutar contra o tempo. O pai, um modesto corredor amador, incentivava-o a ir recolher o correio. “Não és capaz de lá chegar em menos de 30 segundos”. O desafio repetia-se, diariamente, sempre com novos obstáculos. Daniel Martin inculcou no filho a valorização do esforço, mas também o amor pelas bicicletas. “Vi-o apaixonar-se pelo ciclismo desde que começou a falar. Preferia ver corridas do que desenhos animados”.

Explicado o gosto pela modalidade, falta encontrar-lhe a costela filósofa. O responsável é René Guyonnet, chefe de redacção do Express nos anos 60. Foi ao avô, jornalista, tradutor e amante das letras, que foi beber a vertente intelectual. “Desde que começou no ciclismo, aos 13 anos, sempre conjugou as duas paixões. Quando encostava a bicicleta, pegava num livro”, recordou o pai Martin à televisão francesa. Desde então, Guillaume Martin tem vivido num permanente e ténue equilíbrio entre duas forças diametralmente opostas.

No Verão de 2014, foi obrigado, finalmente, a informar a faculdade da sua atcividade extracurricular, por conflitos de tempo entre o seu estágio na FDJ e a escrita da tese. Obrigado a conciliar o mestrado e o ciclismo, o jovem trepador, que nas pausas invernais faz longas viagens, por exemplo até ao Nepal, excedeu-se: ganhou a Liège-Bastogne-Liège de esperanças e uma etapa da Volta a França do futuro.

No final desse ano, assinou contrato com a Wanty-Groupe Gobert. O profissionalismo era agora o caminho. Sem nunca esquecer a filosofia – em Outubro, escreveu a peça de teatro Platon VS Platoche, que a mãe, comediante, vai levar a cena –, dedicou-se de corpo e alma ao ciclismo, acumulando lugares de destaque, como o segundo na Volta à Áustria ou o quarto no Tour de l’Ain. Mas só esta temporada deu verdadeiramente nas vistas, sobretudo no Dauphiné, prova na qual andou em fuga quase todos os dias.

Notabilizado pela sua vertente filosófica, Martin, que é descrito pelos seus companheiros como estudioso, curioso, simpático ao mesmo tempo que fechado, quer desvincular-se desse epíteto e ser conhecido apenas como ciclista. Não será fácil. Até porque é o próprio a reconhecer que os seus estudos influenciam a sua maneira de correr. “Permitem-me recuperar mais facilmente depois das etapas. Paradoxalmente, durante a corrida, tenho a impressão que me prejudicam”.

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