Quando as denúncias são caladas, fala o teatro

Este domingo no Festival de Almada, Gente Comum leva para palco uma série de whistleblowers. Uma peça impressionante da chamada “enfant terrible do teatro romeno”, Gianina Carbunariu.

Fotogaleria
Adi Bulboaca
Fotogaleria
Adi Bulboaca
Fotogaleria
ADI BULBOACA
Fotogaleria
A encenadora e dramaturga romena Gianina Carbunariu DR

Depois de ter agitado a cena teatral de Bucareste, a dramaturga romena Gianina Carbunariu rapidamente conquistou outros palcos ao escrever Kebab, em 2007, para o londrino Royal Court – que logo passou também pela Schaubühne em Berlim. A peça debruçava-se sobre a precariedade da emigração e resvalava até ao submundo do pequeno crime como condição de sobrevivência. O uso despudorado da linguagem levaria a que a estreia numa sala privada romena acabasse por ser cancelada, elevando-a, com um carimbo quase oficial, a enfant terrible da dramaturgia nacional. Pouco depois, aos 33 anos, seria nomeada pela imprensa romena como uma das cem mulheres mais influentes do país e, em 2014, apresentava-se pela primeira vez no Festival de Avignon.

Pouco disponível para atalhar por temas fáceis e confortáveis, Gianina Carbunariu apresenta este domingo na Escola D. António da Costa, no âmbito do Festival de Almada, Gente Comum, impressionante peça em que coloca em palco uma sequência de cenas baseadas numa recolha de casos de whistleblowers – delatores. “Conhecia os casos famosos de [Edward] Snowden, [Hervé] Falciani, etc., mas queria descobrir exemplos menos mediáticos de outras áreas, especialmente no Reino Unido, mas também na Roménia”, enquadra em entrevista com o PÚBLICO. “Foi interessante para mim ler sobre isto, mas de início não sabia que iria desenvolver uma peça sobre esta temática.” Só ao receber um convite para submeter uma ideia para o projecto BeSpectative – um programa europeu destinado a criar laços mais fortes entre público e criadores de teatro – é que Gente Comum começou a tomar forma. Sobretudo, e em particular, recuperou dois casos concretos sobre os quais lera há três anos: o da prestadora de cuidados num lar de idosos Eileen Chubb e o da directora de um serviço de radiologia Sharmilla Chowdhury.

É pelo caso de Chowdhury que Gente Comum começa. Pela denúncia de que nos hospitais públicos os especialistas se ausent(av)am no seu horário de trabalho para estarem ao serviço de privados, deixando muitas vezes os serviços de urgência sem capacidade de resposta. É uma das situações escritas por Gianina Carbunariu a partir de uma recolha de depoimentos de delatores que coleccionou em viagens ao Reino Unido e a Itália (uma vez que este espectáculo do Teatro Nacional Radu Stanca, de Sibiu, se trata de uma co-produção partilhada pelo York Theatre Royal e pelo festival italiano Killowat). “Encontrei-me com os delatores e tive discussões com cada um deles”, diz acerca do processo. “Depois os actores juntaram-se a mim em York e em Sansepolcro, improvisámos alguns dias sobre o material que tinha recolhido, escrevi esboços do guião, dirigi leituras encenadas, apresentei-as primeiro aos públicos italiano e britânico, e tivemos debates com os espectadores, tendo este diálogo sido uma parte fundamental do processo.”

Carbunariu diz-se primeiramente interessada na exploração “deste tipo de situações em que as pessoas fazem coisas normais e acertadas, e por causa disso vêem-se metidas num enorme sarilho”. “Se perguntarmos a qualquer whistleblower, ele ou ela dirá que não podia agir de outra maneira porque o interesse público e o bem comum estavam em risco. Sabiam que, se não denunciassem, as vidas de terceiros, de pessoas que nem conheciam, estariam em perigo. Nunca o fazem em proveito próprio e, infelizmente, na maior parte das vezes arriscam as suas vidas pessoais e as suas carreiras.”

Último recurso

Não querendo diminuir a nobreza das acções dos delatores, Gianina Carbunariu vê em cada um destes casos pessoas que se “limitaram” a reagir a situações concretas, sem pensar em gestos magnânimos. Médicos ou cuidadores que colocados diante das consequências (por vezes mortais) de sistemas minados “tentaram corrigir as coisas usando os meios disponíveis – informar o seu superior”. “Nenhum dos whistleblowers que conheci falou com a imprensa antes de informar aqueles à sua volta sobre a situação. Antes de tornarem o caso público, tentaram encontrar uma solução, mas por vezes isso arrastou-se durante anos.” A denúncia foi, por isso, o último recurso de trabalhadores “frequentemente no auge da sua carreira e que se preocupam muito com o seu trabalho”. E que se vêem depois intimidados e isolados quando o sistema riposta, como que dizendo-lhes que eles sim, eles que apontam as falhas, são o verdadeiro problema.

As consequências na vida dos delatores, reconhece Gianina, são muitas vezes de uma enorme crueldade e de uma magnitude dificilmente antecipável: perdem o emprego, não conseguem voltar a trabalhar na área em que se especializaram, perdem a casa, deixam de conseguir pagar as suas contas, desgraçam a saúde, são ostracizados e ficam à mercê de depressões. “Mas todos os delatores com quem falei”, sublinha Carbunariu, “disseram que o silêncio os arrasaria mais do que todas as consequências nefastas”.

Sem considerar que o seu teatro responde também a uma ideia de denúncia, a dramaturga romena espera poder contribuir para “problematizar situações injustas do nosso tempo e oferecer uma perspectiva sobre o assunto”. E ajudar a ver com nitidez a linha ténue que, muitas vezes, nos separa do desastre.

Sugerir correcção
Comentar