Novo Savoy no Funchal: uma polémica que vem de longe e que agora toca no céu

Volumetria de nova unidade de cinco estrelas na Madeira é um elefante na sala das autárquicas. Ordem dos Arquitectos tinha alertado, antes de a obra arrancar, para o impacto no traço urbano. Agora, com o a estrutura de pé, (quase) todos torcem o nariz, mas ninguém assume a paternidade

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O hotel destaca-se na linha do horizonte do Funchal: parece que ali encalhou um imenso navio de cruzeiros Homem de Gouveia/Lusa

Quando, no início de 2016, a delegação madeirense da Ordem dos Arquitectos (OA) lançou uma petição pública a exigir a redução da volumetria do futuro Hotel Savoy, o silêncio da sociedade civil foi quase total. Apenas 1028 pessoas se fizeram ouvir, e a petição morreu sem chegar ao parlamento regional. Agora, com a estrutura do Savoy já de pé, o ruído em torno da construção da nova unidade hoteleira é ensurdecedor à medida que as paredes do novo hotel vão crescendo no coração da cidade e o impacto do edifício se vai materializando e se destaca com estrondo no horizonte do Funchal.

Rui Campos Matos, responsável pela OA na Madeira, não disfarça a ironia. “Passado um ano e meio, porém, concluída a estrutura do hotel, eis que um vasto coro de vozes se vai erguendo e condenando, em uníssono, a volumetria excessiva do ‘mastodonte’, do ‘aborto’, da ‘monstruosidade’. Que surpresa! Nunca, na nossa ingenuidade, pensámos ser possível ouvir, entoado por tantos, um cântico tão feroz”, escreveu esta semana no Diário de Notícias da Madeira.

O empreendimento conta com mais de 500 quartos, divididos em 19 pisos (cinco dos quais abaixo da cota da estrada) numa área de implantação de 65 mil metros quadrados, e vai substituir o Savoy Classic. Um ícone da cidade, que remonta a 1912, data da inauguração. Ao longo dos anos foi alvo de várias intervenções e ampliações, e na década de 60 do século passado foi demolido para dar lugar a uma luxuosa unidade com 337 quartos em 13 andares. Foi este edifício que veio abaixo em Janeiro de 2010 para abrir espaço a este novo cinco estrelas. A sombra dos novos pisos cai agora sobre a Avenida do Infante, onde entre imóveis classificados se destaca o Hotel Casino Park, a única obra assinada em Portugal pelo arquitecto brasileiro Oscar Niemeyer.

Na semana passada, a delegação regional da OA regressou ao tema, promovendo um debate sobre o impacto da nova unidade hoteleira na cidade para que desse diálogo saíssem ideias que evitassem a repetição de mais “desastres” desta natureza no Funchal. O objectivo, sublinha Rui Campos Matos ao PÚBLICO, nunca foi responsabilizar um ou outro político, aquela ou aqueloutra força política, mas a sessão acabou por ser contaminada pelo clima de eleições autárquicas, em que a Câmara do Funchal assume especial importância.

Ninguém, nem a anterior vereação liderada pelo social-democrata Miguel Albuquerque, agora chefe do governo madeirense, nem a actual, do independente Paulo Cafôfo, assumem responsabilidades sobre a viabilização da nova unidade hoteleira. Mas a verdade é que, nesta polémica com mais de dez anos, não há inocentes, a começar pelo anterior executivo madeirense.

Em Fevereiro de 2007, e numa altura em que o governo se encontrava em fase de gestão, por Alberto João Jardim se ter demitido para antecipar as eleições regionais, o parlamento regional aprovou, com carácter de urgência, a suspensão do Plano de Ordenamento Turístico, abrindo espaço para a construção de mais camas. O limite do que se considerava a sustentabilidade do destino estava na 23 mil camas e praticamente esgotado, mas, com este decreto regional aprovado com os votos do PSD contra toda a oposição, abriu-se uma porta para hotéis como o Savoy poderem aumentar a capacidade.

Um ano depois, a autarquia, liderada por Albuquerque e com Rubina Leal, que concorre à Câmara do Funchal em Outubro pelo PSD, na equipa, aprovava o Plano de Urbanização do Infante (PUI), com a oposição a denunciar o documento como tendo sido desenhado à medida do proprietário do hotel, o grupo SIET-Savoy controlado por Joe Berardo e Horácio Roque.

Estávamos em Março de 2008 mas meses depois, em Novembro, quando o estudo prévio do Savoy chegou à câmara, já ninguém assumiu uma posição contrária. O projecto acenava com mais de 100 milhões de euros de investimento. Cerca de 300 postos de trabalho para a construção civil. Mais de 200, quando a obra estivesse concluída. Tudo numa altura em que o arquipélago começava a ressentir-se da crise, e o ciclo de obras públicas promovido por Jardim estava a esgotar-se. O PSD aprovou o projecto e a oposição absteve-se. Ricardo Vieira, do CDS-PP, saiu mesmo da sala no momento da votação, devido às ligações profissionais que mantinha com os promotores.

O aval municipal ditou o fim do antigo Savoy Classic, que foi encerrado em Maio do ano seguinte, com o despedimento colectivo de 95 trabalhadores. A demolição começou em Janeiro de 2010, mas, um ano depois, por falta de financiamento, os trabalhos pararam, deixando uma cratera com o tamanho de dois campos de futebol no centro de uma das zonas nobres da cidade.      

Pelo meio a crise acentuou-se, e a SIET-Savoy acabou por ser vendida ao grupo madeirense AFA, com interesses diversificados desde a construção à hotelaria. O negócio, feito no final de 2015, concretizou-se por 115 milhões de euros, e só avançou depois de a autarquia já presidida por Cafôfo, que lidera uma coligação de partidos encabeçada por PS e Bloco de Esquerda — que antes tinham estado contra o projecto —, dar garantias de viabilizar o empreendimento. Quando podia ter revisto o PUI, optou por simplificar processo e procedimentos, justificando com a importância da obra para a cidade. Era preciso preencher aquela cratera.

Rui Matos Campos concorda, mas insiste que aquele PUI é uma “aberração” do ponto de vista urbanístico. “Estamos a falar de uma área que é o Funchal romântico do século XIX”, lamenta ao PÚBLICO, dizendo que agora, com o edifício de pé, já não há nada a fazer.

“Na nossa ingenuidade, preferimos continuar a acreditar nos políticos que elegemos (que são homens como nós), e recusaremos sempre, como reza o ditado, atribuir à malícia ou à venalidade aquilo que cabalmente se pode atribuir à estupidez”, concluiu o arquitecto, no artigo de opinião antes citado.

Notícia corrigida às 15h51 de 15/07, 2017

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