Os artistas de hoje filmam a escultura clássica

Sete artistas entraram nos museus à procura da sua relação com a escultura greco-romana. O resultado pode ser visto numa exposição de entrada livre que abre nesta sexta-feira na Gulbenkian.

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A exposição, com curadoria de Penelope Curtis, explora o fascínio que a escultura antiga tem vindo exercer sobre a arte contemporânea Daniel Rocha
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A curadora da exposição, Penelope Curtis Daniel Rocha
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A exposição Escultura em Filme -The Very Impress of the Object tem entrada livre. Daniel Rocha
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Há décadas que o ensino das artes deixou de considerar as práticas oficinais como prioritárias. Hoje, que o conceito da obra a realizar prevalece sobre a sua materialização, é comum para um artista encomendar o trabalho mais técnico (de carpintaria ou cantaria, por exemplo), a um artesão ou um operário qualificado para tal.

Isto não significa, como é evidente, que a escultura pré-moderna, aquela que se fez sensivelmente até finais do século XIX, e onde a “mão”, o domínio técnico e a perícia oficinal dominavam, não continue a exercer um fascínio evidente sobre os artistas mais jovens. A existência de museus, e sobretudo de museus de arte antiga, formados na Europa sensivelmente desde no neo-classicismo, contribui fortemente para que seja hoje possível apreciar – embora com todas as restrições devidas ao isolamento das peças do seu contexto original – obras de arte desta natureza em qualquer grande capital europeia. São frequentemente obras que falam aos artistas, que os motivam a pensar, que se revelam, em certa medida, vivas e pulsantes, bem ao contrário do que sucedia em tempos de vanguardas onde o importante era renegar o passado. Longe vai hoje o tempo em que o futurista Marinetti escrevia que um automóvel rugidor era mais bonito que a Vitória de Samotrácia. É de certeza diferente, como são diferentes os tipos de interrogações filosóficas, éticas, estéticas que ambos os objectos levantam. 

A  Fundação Gulbenkian inaugura esta sexta-feira, justamente, uma exposição com cinco obras criadas por sete artistas — Fiona Tan, Mark Lewis, Rosa Barba, a dupla Lonnie van Brummelen e Siebern de Haan, e uma segunda dupla, Anja Kirschner e David Panos—, em que todos escolheram o suporte fílmico, digital ou analógico, para olhar para a escultura antiga. Quase todos eles olham para a escultura a partir do museu, como lugar de arquivo visual e material, nesta exposição intitulada Escultura em Filme -The Very Impress of the Object, que tem entrada livre.

A montagem, que ocupa toda a Galeria Principal da sede do Museu Gulbenkian, em Lisboa, separa de modo nítido as diferentes abordagens, não deixando que cada peça interfira com as demais, mesmo quando existe banda sonora. Podemos descobrir uma espécie de progressão entre a proximidade total do olhar nas primeiras obras que vemos, as de Fiona Tan e Mark Lewis, e a última, assinada por Lonnie van Brummelen e Siebern de Haan, em que o objecto é captado apenas através de uma fotografia. Não nos foi possível ver a peça de Rosa Barba no momento da visita por problemas técnicos.

Fiona Tan, justamente, através dos filmes passados simultaneamente em seis projectores, debruça-se fascinada sobre a colecção particular do arquitecto John Soane, um dos introdutores do estilo neoclássico no Reino Unido e um coleccionador apaixonado de fragmentos de escultura greco-romana. A câmara de Tan deambula pelas salas repletas de objectos, parando aqui e ali para nos mostrar um fragmento de perna de escultura, um sátiro, uma cabeça romana, sem tomar nunca partido pelas questões que inevitavelmente se associam àquela que é também uma paixão pela acumulação e pela posse de riqueza, mesmo que apenas simbólica.

Em Mark Lewis, já não se trata do gosto de possuir uma obra de arte, mas do fascínio voyeurista que ela exerce sobre os seus apreciadores. Tendo sido convidado pelo Louvre a realizar uma série de cinco filmes sobre as colecções de escultura, Lewis escolheu a filmagem nocturna de O Hermafrodita, uma escultura helenística que representa aparentemente uma bela mulher deitada de bruços — que se revela, afinal, ser também homem. Ao lado, David Panos e Anja Kirschner mostram uma instalação visualmente complexa e um pouco densa demais sobre a extracção de prata em Lavrotiki  — que servia para fazer moedas gregas desde a época clássica — nos arredores de Atenas, onde pretendem estabelecer pontes conceptuais entre esse facto histórico e a crise pós-2008. Finalmente, van Brummelen e Siebern de Haan quiseram reconstruir os relevos do altar de Zeus de Pérgamo, conservados no museu do mesmo nome em Berlim. Tendo-lhes sido negada a licença para filmar no interior do museu, construíram um arquivo fílmico a partir de imagens fotografadas em vários livros que possibilitaram a reconstrução visual dos frisos. Trata-se aqui não já de uma intermediação entre artista e obra original através do filme, mas entre artista e obra original através da reprodução fotográfica filmada.

De notar ainda que, no lugar onde está, bem perto das peças de arte da antiguidade pertencentes ao Museu Gulbenkian, esta exposição exemplifica bem o conceito que tem orientado o trabalho de Penelope Curtis à frente do museu: colocar em diálogo as obras da colecção do fundador com obras de artistas dos dias de hoje. Mesmo que nenhum destes cinco trabalhos seja sobre o Museu Gulbenkian, eles constituem um excelente exemplo do modo, ou dos modos, como os artistas actuais consideram a arte antiga: como algo de vivo, respirante, motivante.

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