Morreu Elvira Vigna, a escritora que incomodava o leitor

Era uma das vozes mais originais da literatura brasileira. Estava doente desde 2012, mas não o quis revelar. Morreu na segunda-feira, aos 69 anos, num hospital de São Paulo.

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Elvira Vigna dr

A escritora brasileira Elvira Vigna morreu na segunda-feira, aos 69 anos, no hospital Albert Einstein, em São Paulo, onde estava internada desde Fevereiro. Foi através de uma "nota de falecimento" colocada nas suas páginas nas redes sociais que se soube que a autora de Nada a Dizer (Prémio de Ficção da Academia Brasileira de Letras, editado em Portugal pela Quetzal) estava doente desde 2012, altura em que lhe foi diagnosticado um cancro na mama.

“Elvira não quis que sua doença viesse a público por saber que, caso isso acontecesse, ela passaria automaticamente a ser excluída das actividades profissionais que dependessem de convite. Esperamos que a sua produtividade sirva de exemplo e estímulo para que todos aqueles que passem por dificuldades não abram mão de quem são, do que fazem e do que querem fazer”, lê-se nessa nota divulgada pela família da autora de Sete Anos e Um Dia (1988), O Assassinato de Bebê Martê (1997), Às Seis em Ponto (1998), Deixei ele lá e vim (2006), O que deu para fazer em matéria de história de amor (2012), Por Escrito (2014), entre outros.

Era uma das vozes mais originais da literatura brasileira. Era comum dizer-se que estava a escrever cada vez melhor, e os vários prémios que foi recebendo nos últimos anos mostram-no. Na sua escrita, tudo era burilado até à exaustão para que não houvesse uma palavra nem a mais nem a menos. Na brincadeira, dizia que isso acontecia porque trabalhava muito. “Reescrevo meus livros muitas vezes. Parto do que vi, ouvi ou vivi – e que jamais esqueci. Mas vou reescrevendo para encontrar uma unidade interna, específica de cada livro. Acho escrever muito difícil”, confessou ao PÚBLICO numa entrevista que deu, por email, em 2013.

Antes de se estrear nos romances para adultos, Elvira Vigna começou por escrever literatura infantil e também era ilustradora. Nada a Dizer é o seu único romance publicado em Portugal e relata como um casal de meia idade tenta sobreviver à traição. No seu último livro, Como se estivéssemos em palimpsesto de putas, que em 2016 recebeu o prémio da Associação Paulista de Críticos de Arte para o melhor romance, um homem relata a uma designer os seus encontros frequentes com prostitutas. Entre os seus temas estão a memória, as questões éticas e de identidade e género. 

Segundo a nota colocada nas redes sociais, a escritora deixou três livros prontos para serem publicados. Ao jornal Estado de São Paulo, o escritor Eric Novello, genro da escritora, explicou que um deles é uma republicação, o outro, um livro infantil, e há ainda uma ficção que dialoga com escritos de Kafka.

A confirmar-se, não será a primeira vez que a autora utiliza este expediente narrativo, pois já na entrevista ao PÚBLICO explicava que tinha uma obsessão por Camões, e que no seu quarto romance, Coisas que os homens não entendem (2002), o citava sem aspas, no meio do texto. O poeta português foi, aliás, tema de uma palestra que deu em Lisboa, na embaixada brasileira, em 2012, e que se intitulava precisamente Coisas que os homens não entendem e Camões.

Elvira Vigna costumava dizer: “Eu não invento nada, copio mesmo”. É algo que lhe ficou dos tempos de jornalismo, essa capacidade de ser “toda ouvidos”.

Formada em Literatura pela Universidade de Nancy, em França, era mestre em Comunicação pela Universidade do Rio de Janeiro, cidade onde nasceu. Além da carreira como jornalista, que passou pelo Globo e Folha de São Paulo mas também Estado de S. Paulo e Correio da Manhã, Vigna foi também crítica de arte contemporânea e tradutora. Teve uma editora, a Bonde, onde durante cinco anos publicou a revista marginal-literária A Pomba e, em 1988, abriu uma empresa de traduções.

Dizia que as imagens eram a base da sua escrita e que utilizava o hiper-realismo como técnica. “São imagens o que está na minha cabeça quando começo a escrever a história delas. O hiper-realismo é uma técnica terrível. Você não ‘inventa’ nada. Você desenha ou pinta exactamente o que está lá. E o que seria a reprodução anódina de algo bem comum – digamos, um balcão de bar ou uma praia cheia – se torna perverso. Isso porque, ao olhar normalmente seja o que for, você ‘filtra’ as imagens que vê. Você omite detalhes e acentua outros, a depender de qual acervo cultural você tem, qual é a sua ‘vontade’ em relação àquilo que você vê, e qual os seus traumas – a ‘apagar’ o que não gosta. O hiper-realismo, de Hooper e outros, te impede de fazer isso. Te obriga a ver. Desestabiliza as tuas certezas em relação àquilo. O que era banal e anódino se torna ligeiramente perverso. Você não sabe direito o que te incomoda. Mas incomoda. Quando descrevo os detalhes do motel ou de um almoço com essa mesma técnica, o que poderia ser visto como algo comum ou positivo também passa a incomodar quem lê”, dizia ao PÚBLICO em 2013.

 

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