As avós fizeram sacos onde cabe toda a Baixa de Coimbra

Iniciativa do colectivo de estudantes de arquitectura Há Baixa leva população mais idosa a fabricar um saco que simboliza a comunidade e promove o contacto entre pessoas.

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Tilda Simões já não sabe dizer como ouviu falar do projecto pela primeira vez, mas faz um esforço de memória enquanto borda uma linha encarnada num saco de pano estampado com motivos azuis. À volta de uma mesa do Salão Brazil - uma sala de espectáculos e casa de uma associação cultural na Baixa de Coimbra - estão mais senhoras, atarefadas com o mesmo corta e cose.

Faz-se-lhe uma pergunta e Tilda, senhora dos seus 83 anos, desenvolve o resto da conversa, contando entre pormenores que a vida não tem sido fácil. “Gosto de conviver. Estou praticamente sozinha”, começa por dizer.

Ao lado estão Rosa Carvalho e Piedade Silva, duas vizinhas que vieram do Casal do Lobo, nos arredores de Coimbra. Estão nisto há três dias. “Foi o meu neto que me desencaminhou”, revela Piedade com um sorriso. O neto é João Peralta, um dos estudantes do colectivo Há Baixa, que começou no ano passado a fazer intervenções para melhorar as condições de quem vive e trabalha naquela zona da cidade.

Uma das ideias de base do Há Baixa passava por envolver a população, algo que o grupo de estudantes de arquitectura da UC reforça na segunda edição, que arrancou no sábado passado.

Para isso, em paralelo com as obras em vários espaços, o colectivo está a dinamizar o projecto do Saco da Baixa de Coimbra. Durante três dias , gente da Baixa (e não só) juntou-se no Salão Brazil para costurar e decorar sacos e carteiras de pano que estão à venda em vários pontos do comércio local. Cada peça é original, com uma aplicação diferente bordada a vermelho.

O ponto de partida para o fabrico do saco foi uma conversa entre comerciantes, membros do colectivo Há Baixa e Jazz ao Centro Clube, associação cultural que gere o Salão Brazil.

Ideia de comunidade

Recuperar um sentimento de comunidade. É esse o ambicioso papel simbólico de um simples saco.  A Baixa tem 10% da população que tinha na década de 1980, refere João Peralta. E isso é um problema. “A cidade está muito virada para a questão turística e estudantil, o que nos põe umas palas nos olhos” para os problemas de uma população envelhecida e muitas vezes invisível. Este trabalho “faz as pessoas saírem de casa” e participar em algo. “O saco é simbólico dessa dinâmica, esse processo colaborativo, é também uma maneira de chegarmos às pessoas e de elas serem apoiadas”, explica o estudante.

O Saco da Baixa de Coimbra tem muita da ideologia por trás da iniciativa lisboeta A Avó Veio Trabalhar, da associação Fermenta, que gira em torno dos conceitos de design social e trabalho participativo. Susana António, designer e uma das mentoras da ideia, já esteve em Coimbra em 2016, para um workshop inserido no programa Há Baixa.

Este recipiente de tecido , defende Susana, pode funcionar como um elemento de ligação entre a população local e quem passa pela cidade, em vez de essa relação ser de tensão, como já acontece noutros pontos do país como Lisboa e Porto. Coimbra está “num período de pré-gentrificação, entende João Peralta. “Se calhar ainda vamos a tempo de pensar em soluções”.

A designer acredita, apesar das mudanças no ecossistema local, é possível reactivar essa ideia nostálgica de comunidade.

Depois da participação na edição passada, este ano voltou de Lisboa com as avós Nazaré, Clara e Patrícia, para ajudar no arranque do trabalho das cinco de Coimbra.

Tomar, Porto, Alentejo. Já perderam a conta às cidades e regiões que visitaram por causa dos workshops do Avó Veio Trabalhar.

Se em Lisboa o trabalho na sede do projecto, na rua do Poço dos Negros, lhes vai ocupando o tempo, o percurso pelos vários pontos do país não se resume ao trabalho. “No Porto até íamos à discoteca”, atira Clara, que diz também que houve quem aproveitasse as deslocações para estar com pessoas que não via desde há tempos.

Nenhuma responde directamente à indelicada pergunta sobre a idade. Preferem dizer data de nascimento, para não terem de falar num número que não lhes faz jus à vivacidade.

O projecto, garantem, serve não apenas para preencher o tempo, mas também para aprender, ensinar, trocar receitas e ajudar-se mutuamente. “Faz a gente se sentir viva”, resume Patrícia, nascida no Brasil mas fixada em Portugal por causa das avós. “Tem gente em Lisboa que só sai de casa para ir para a avó”, conta.

Esta colaboração entre os dois projectos não é apenas vocacionado para a terceira idade, acrescenta João Peralta, mas tem também uma componente inter-geracional, contando com a participação de voluntários do Há Baixa.

Produção e futuro

Os três dias de trabalho entre segunda e quarta-feira saldaram-se em 33 sacos e 20 carteiras de pano, que foram distribuídas pelas lojas. É a primeira vaga de produção. João Peralta explica que o objectivo não é fazer lucro, mas apenas gerar dinheiro para pagar materiais. Os sacos custam dois euros e as carteiras 3,5, sendo que o montante que sobrar servirá para apoiar iniciativas de habitantes da Baixa.

“A ideia é partir daqui e que a iniciativa se autonomize”, adianta também. “Esta iniciativa é um protótipo de o que queremos fazer”, reforça João Peralta, que acrescenta que a, a médio prazo, o objectivo é passar esta actividade para os centros de dia, repetindo-a não só durante o período de execução do Há Baixa, mas de semana a semana.

De partida para a capital, Susana António afirma que, para que isso aconteça “é preciso encontrar uma embaixadora, que agregue o trabalho de costura e de bordados”. A candidata mais forte é a artesã Rosa Antunes, que por acaso trabalha no Salão Brazil e se disponibilizou para ajudar.

“Caí aqui de pára-quedas”, graceja, enquanto recorta milimetricamente outra faixa de tecido. Como artesã, começou por fazer trabalhos com materiais reciclados como escamas de peixe, sementes de melão ou bichos da seda. Agora está parada. “Não se consegue vender, as pessoas não dão valor”. Agora diz-se disponível para continuar no projecto dos sacos.

Susana António parece não lhe deixar outra opção. “Não foi preciso entrevista. Já foi contratada e não pode dizer que não”.

Mais um Verão a tratar da saúde à vida da Baixa

A intervenção da segunda edição do Há Baixa arrancou no sábado. Na lista de obras a realizar estavam duas habitações, que acabaram por não avançar por causa de questões relacionadas com os senhorios.

Com um número de voluntários semelhante ao do ano passado, o programa deste ano inclui assim uma intervenção na Casa Medieval, num pátio do Salão Brazil (casa de espectáculos da Baixa) e o melhoramento de dois negócios de rua, ajudando um artesão de couro e um vendedor de livros em segunda mão. Outra das componentes deste ano é a Ocupação Tropicana, uma proposta de vivência artística e comunitária que se situa no Largo do Poço. O espaço é ocupado temporariamente para que artistas possam expor o seu trabalho.

Há também as estruturas efémeras, que este ano resultaram de um concurso entre várias propostas submetidas por estudantes de arquitectura. Se em 2016 o epicentro foi o Largo do Romal, este ano o colectivo ocupa os largos da Fornalhinha, do Paço do Conde e do Adro de Baixo com um pequeno anfiteatro ao ar livre, uma esplanada e uma zona de leitura com espaços expositivos. O projecto vencedor é da autoria de Ana Inês Fonseca, Décio Teixeira e João Casqueiro e tem nas paletes o principal material de construção.

Carlos Fraga, do colectivo, explica que o facto de este não ser a primeira vez que estão a levar a cabo os projectos não torna a tarefa mais fácil. Em relação aos materiais, por exemplo, já tinham contactos com algumas empresas, mas como cada obra é diferente e precisa de outros materiais, tiveram que abrir mais frentes.

Para contornar as dificuldades de financiamento, o grupo está igualmente a preparar uma campanha de crowdfunding. “Muitas vezes, nos espectáculos perguntavam-nos como é que podiam ajudar”, explica Carlos Fraga, referindo que este foi o modelo encontrado para que as pessoas que se revêem na iniciativa possam contribuir.

O município aprovou este ano um apoio de 3 mil euros à iniciativa. Depois de um encontro com os estudantes, o presidente da Câmara Municipal de Coimbra, Manuel Machado, fez saber, através de uma nota de imprensa, que estava a estudar atribuir um espaço na Baixa da cidade para o colectivo poder desenvolver a sua actividade. Francisco Paixão, membro do Há Baixa, refere que, com o início da intervenção, deixaram de ter tempo para tratar da sede. “Estamos em standby. Quando a edição acabar voltamos a pensar nessa questão”.

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