O regresso do Ocidente

Toda esta discussão banal, tem procurado omitir a evidência de que uns e outros partilham um mesmo ocidentalismo.

“A questão fundamental do nosso tempo é saber se o Ocidente tem suficiente determinação para sobreviver". No dia seguinte à enésima demonstração de que o líder dinástico da Coreia do Norte quer jogar o mesmo jogo belicista dos americanos, Trump voltou a desfraldar a velha bandeira do Ocidente/Mundo Livre. Foi em Varsóvia, ao lado do presidente polaco, Andrzej Duda, um dos líderes da extrema-direita que chegou ao poder num dos maiores países da UE.

Os ocidentalistas devem estar contentes. Depois de todo este último ano preenchido com tanto lamento pelo pouco empenho que o novo presidente americano parecia ter relativamente à NATO,  Trump volta a sintonizar plenamente com esse exército de atlantistas e neoconservadores que mantêm, por mais tempo do que eu imaginara, uma campanha contra ele, muito mais centrada nas formas do que na substância. “Temos nós suficiente confiança nos nossos valores para os defender a todo o custo? Temos suficiente respeito pelos nossos cidadãos para proteger as nossas fronteiras? Temos coragem e desejamos, de facto, preservar a nossa civilização face àqueles que a querem subverter e destruir?”

Paremos um pouco para pensar: afinal, o que separa Trump dos seus críticos atlantistas? Não são estes que querem o reforço do gasto militar? Não é o que repete o secretário-geral da NATO? E não é essa a grande campanha de Trump, exigindo aos seus aliados na NATO que gastem pelo menos 2% do PIB em defesa? Ou o que se achará ser aquela "coragem para preservar a nossa civilização"? Não anda Trump por esse mundo fora a fazer de caixeiro viajante das grandes companhias armamentísticas norteamericanas? Em Ryad (capital ocidental como poucas...) assinou o maior contrato de sempre com os sauditas, dando-lhes luz verde para ameaçar o Qatar (e, em última instância, o Irão) com a guerra - coisa, no mínimo, tão inócua quanto a invasão do Kuwait por Saddam Hussein com as consequências que se podem imaginar no custo do petróleo e da energia. Em Varsóvia, elogiou a Polónia por ser "um dos poucos países que respeita o compromisso da NATO quanto à despesa militar" e por ser "um aliado vital contra o Estado Islâmico e uma nação que mostra como a defesa do Ocidente é uma questão de vontade" (La Repubblica, 6.7.2017). De vontade e de mísseis, os Patriot, para ser mais preciso, que Trump acaba de lhes vender, para que os polacos os possam usar contra Putin - o mesmo que os atlantistas Trump-céticos nos querem convencer ser o grande aliado do novo presidente USA. Os que julgam que Trump quer trair o Ocidente com Putin parecem-se com aqueles que julgavam em 1939-41 que Hitler traíra o Ocidente com Stalin e alimentam um dos grandes equívocos de interpretação do trumpismo e do seu projeto para "Make America Great Again!": provocar/agravar a instabilidade permanente do sistema internacional, alimentar um estado de guerra permanente que justifique a consolidação de um estado de emergência tornado norma social e política e que assuma o rearmamento internacional como programa de reativação da economia e da hegemonia dos EUA.

Toda esta discussão banal sobre se o trumpismo é uma forma de nacionalismo e sobre se alimenta o regresso dos nacionalismos na Europa (o Brexit, a extrema-direita a dirigir governos na Europa Centro-Oriental e a participar em vários por toda a Europa), contrapondo nacionalistas e europeístas (se houvesse conceitos mais difíceis de definir...), tem procurado omitir a evidência de que uns e outros partilham um mesmo ocidentalismo, isto é, uma ideologia de superioridade civilizacional do Ocidente que, num mundo instável, se confirmaria, meio século depois das descolonizações, como tendo o dever (e a legitimidade) de reimpor (ou conservar?) uma nova ordem mundial. Significa isto fechar o ciclo histórico da emancipação afroasiática e consagrar uma visão neocolonial do mundo? Pouco importa!

Que depois se discuta que Trump não tem "dignidade" para ser presidente dos EUA e líder do Ocidente é secundário. Como bem pergunta Ross Barkan, "o que é a dignidade [presidencial], afinal? Invadiu George W. Bush o Iraque com dignidade?" (Guardian, 6.7.2017)

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