Um reino por três guitarras e um acordeão

O disco de estreia dos Guitardeão traz sonoridades que se movem habilmente entre géneros. Bem-vindos ao Reino de Apolo – ou a Celorico da Beira, onde ele nasceu

Foto
marco pitt

Por vício ou irreprimível defeito, de cada vez que surge um novo nome na música, a primeira coisa que nos ocorre é tentar classificá-lo num género ou corrente. Talvez para evitar tal tentação, os Guitardeão apresentaram-se oficialmente desta maneira: “Não é música Erudita mas tem Erudição, não é Jazz mas tem Improvisação, não é Fado mas tem Emoção.”

Afastem, pois, os carimbos, que nova música se levanta? Não é exactamente isso, mas este projecto nascido em Celorico da Beira, quarteto que integra duas guitarras, baixo, acordeão (daí o nome) e, mais recentemente bateria (o que o eleva já a quinteto), move-se entre géneros e fronteiras em busca de um som próprio, identificativo.

Alexandre Loio, que compõe grande parte dos temas do grupo, explica-se: “Desde sempre quisemos fazer qualquer coisa que marcasse, não digo a diferença nem fazer coisas novas, porque está tudo descoberto, mas que trouxesse algo de novo. E a nossa música, vista como um todo, tem coisas que as outras não têm. Não é jazz, nem clássica, nem pop, nem rock, mas tem um pouco disso tudo.”

Ao ouvir Reino de Apolo, o CD de estreia do grupo, essa diversidade de influências é notória. E se instrumentalmente o jogo entre as cordas e o fole do acordeão se revela equilibrado e dinâmico, sem preponderâncias de qualquer dos elementos, em termos vocais vêm-nos à memória ecos da Filarmónica Fraude ou do Quarteto 1111, não só pelo jogo de vozes (todos os elementos do grupo cantam, cabendo a Alexandre a voz solista) e respectivas harmonias como pelas temáticas, entre a ironia e a crítica social.

Alexandre, que teve formação clássica no Conservatório da Guarda, conta como foi criando musicalmente as canções. “Transpondo as ideias de alguns compositores que ouvi, como Leo Brouwer, ou transcrições de Bach para guitarra, isso associado a outras linguagens, ao gosto pelo jazz e pela improvisação, e associado ao acordeão, produz uma outra sonoridade.” Influências? “Conservatório, ouvir muita música clássica, muito jazz, muita world music, fado, tango, flamenco, a música dos Balcãs.”

Gabriel Gomes, o acordeonista do grupo, conta que a experiência musical conjunta dos quatro tem 12 a 13 anos: “Já tocávamos há muito tempo juntos, mas com outro nome. Erámos um grupo de covers, mas muitas vezes incluímos originais nossos.” Antes de gravarem em Coimbra o seu primeiro disco, concluído no início de 2016, actuavam sob vários nomes, como Feiticeiros de Hórus (vencedores do nono Festival Ibérico da Canção Jovem 2005, com a canção Alma siamesa, que abre agora o disco dos Guitardeão, nome adoptado para o novo projecto) ou Feiticeiros Ensemble.

Todos os quatro músicos fundadores do grupo são de Celorico da Beira: Alexandre Loio (guitarra clássica), Gabriel Gomes (acordeão), Pedro Silva (guitarra nylon), João Coreixas (baixo). No disco colaboraram ainda Luís Formiga, Augusto Cameirão, Beto Kalulu e Tomé, todos nas percussões. Isso antes do quinto elemento: “Hoje temos um baterista fixo, o Gonçalo Ribeiro, da Guarda, que está a estudar jazz em Lisboa.” E é em formato quinteto que têm vindo a apresentar o disco pelo país. Esta sexta-feira, por exemplo, são um dos cabeças de cartaz do Festival SERnancelhe + Cultura e vão actuar duas vezes, às 19h30 e às 22h, no centro histórico da vila de Sernancelhe.

Do Portugal profundo

Dos 14 temas do disco, dos quais muitos são canções, embora haja instrumentais, alguns são já “antigos”. “Há músicas que vêm desde o meu período final de adolescência até aos dias de hoje”, diz Alexandre. “Falam de amor, desamor, crises existenciais, preocupações com o mundo, injustiças, a natureza, locais sagrados, episódios com personagens pagãs, política, guerra, fraudes bípedes (sobre pessoas que nos defraudaram há tanto tempo e nos continuam a defraudar). Têm uma matriz política e de intervenção social.” Veja-se, por exemplo, Sonho de Mustafá: “Imaginemos um Zé de Portugal e um Mustafá do Médio Oriente. Têm um sonho em que todas as pessoas da Terra se juntam num concílio, à volta de uma mesa, e tentam melhorar as coisas; depois há a parte da revolta das pessoas.” Gabriel Gomes acrescenta: “Contra a fome, a desigualdade, contra tudo o que está mal. Esta música ultrapassou o próprio tempo."

E há Papalagui, escrita depois de ler o livro homónimo, que relata as reacções de um chefe índio da Polinésia ao confrontar-se com a civilização ocidental: “Sentimo-nos um bocado assim, quando vamos a Lisboa”, graceja Alexandre. “Porque nós somos do Portugal profundo. E isso está vincado nestas músicas.” Gabriel sublinha a ideia: “Há a preocupação de trazer um pouco da nossa imagem e das nossas raízes e levá-las a quem nos quiser ouvir. Não somos um projecto para grandes festivais, mas queremos tocar para pessoas que estejam dispostas a ouvir música pensada e com significado.”

Uma grande viagem

Porquê Reino de Apolo para título do disco? Alexandre tem uma explicação simples. “Foi um grupo em que eu participei muito jovenzinho, em Celorico, mas com um estilo completamente diferente.” Mas há outra, mais elaborada: “O Reino de Apolo para nós, para o nosso grupo, é a nossa visão de um mundo melhor, é o nosso reino.”

Gabriel: “Há uma grande viagem entre as músicas. Quem ouvir o disco do princípio ao fim verá que não há um estilo preponderante. Existe uma linha bastante vincada ao nível dos espaços de solos e de linhas melódicas cantadas pelos instrumentos, mas sente-se ali uma viagem e esse é o nosso reino, onde existe um bocadinho de tudo de uma forma equilibrada, justa, atribuindo um grande valor às letras e à poesia.” 

E à música também, claro. Gabriel diz: “Existe uma preocupação muito grande, que tentámos ao máximo traduzir no CD, de respeitar a dinâmica e o espaço de cada instrumento. Um acordeão pode, sem esforço, anular uma guitarra. Mas ensaiamos há anos e conseguimos chegar a um equilíbrio." Alexandre aproveita a deixa e ironiza: “Neste caso, a música é um bom exemplo para a vida: há respeito mútuo.”

Sugerir correcção
Comentar