O Ciência 2017 voltou depois à ciência

Temos uma posição de repúdio contra todos aqueles que se querem apropriar da linguagem, processos e formato da ciência para os contorcionarem em seu benefício, numa manobra de pseudocientista.

Quatro mil participantes, 400 comunicações, todas as áreas científicas representadas, o melhor da ciência que se faz em Portugal reuniu-se de novo este ano no Encontro de Ciência 2017, promovido pelo Ministério da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior. Mas este encontro contou com uma reviravolta (literalmente, com um contorcionamento iogue).

Celebraram-se e discutiram-se avanços, compreenderam-se, questionaram-se e aproximaram-se áreas diferentes, porque a ciência se faz assim. Acrescentando conhecimento, juntando partes e fazendo do todo algo maior que a soma dos seus elementos. Todos os que ali foram confiavam poder encontrar uma visão crítica e informada do nosso mundo, alicerçada no método científico. Mas logo na sessão de abertura, fomos surpreendentemente convidados a testar, literalmente inclusive, a nossa flexibilidade. Havendo um país convidado – a Índia – com quem coincidimos em vários interesses científicos, do mar ao espaço, alguém considerou que podia ser relevante incluir uma palestra na sessão de abertura que esclarecesse os 4000 cientistas presentes sobre “Ioga Ancestral de Bhárata/Índia, Desenvolvimento Pessoal, e Cidadania”. Pode ler de novo, pois foi o que fizemos todos, mas este era mesmo o título da intervenção de Jorge Veiga e Castro, mestre internacional de ioga.

Entre a curiosidade e a surpresa, todos sentados no imenso auditório, começámos a ouvir uma narrativa que em nada coincide com a visão científica do mundo. O mestre de ioga achou que, perante esta plateia, o mais adequado era mostrar-nos como a sua disciplina é científica e como abarca nada menos do que um modelo do nosso Universo. Seleccionou como primeira referência científica os trabalhos dos irmãos Bogdanov, célebres por tentarem relacionar conceitos tão díspares como o funcionamento do pêndulo de Foucault e a criação do Universo, mas sem proporcionarem detalhes concretos, um modelo, ou previsões testáveis. É fácil de compreender porque são alvo de fortes críticas no interior da comunidade científica, e vistos por vários especialistas da área como pseudocientistas.

Explicou-nos também que o ioga permite não tomar fármacos, que permite fazer a edição de genes e, para o caso de não termos ouvido bem, mostrou a dupla hélice do ADN em fundo azul como confirmação da extensão do seu entendimento do mundo. Explicou que a evolução das espécies tem sido feita ao longo de milhões de anos não porque a biologia o dita, mas para nos dar tempo para absorver a energia cósmica, e assim entender o Universo. Ainda rematou com a afirmação de que a origem da vida foi há 14.000 milhões de anos, quando esse é o tempo da origem do universo – a vida só surgiu há 4000 milhões de anos.

Muitos foram aqueles que não conseguiam esconder o seu desconforto, e o burburinho cresceu na sala. Alguns dos presentes optaram por sair. O incómodo gerado por tal “contorcionamento” injustificável do que se esperava ser um encontro científico era patente na audiência.

Não temos opinião a dar sobre a prática de ioga, não temos opinião a dar sobre os benefícios do ioga no estado emocional de cada um. Achamos sim de gosto questionável – e potencialmente ofensivo para os convidados – a inclusão de uma apresentação cujo conteúdo desrespeita a missão da ciência e desconsidera o método científico.

Como cientistas e comunicadores de ciência, temos uma posição de repúdio contra todos aqueles que se querem apropriar da linguagem, processos e formato da ciência para os contorcionarem em seu benefício, numa verdadeira manobra de pseudocientista. Somos contra aqueles que escolhem trabalhos científicos já desacreditados pela comunidade, usando-os como evidência que apoia a sua visão subjectiva do mundo. Somos também contra aqueles que prometem benefícios que não podem oferecer, mais ainda se relacionados com a saúde e estado clínico de pessoas fragilizadas. Recusamos associar a comunidade científica nacional a uma palestra que de científico nada tem.

Cientistas e comunicadores de ciência

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